Períodos Sensíveis VIII – Escrita

Talvez possamos aliviar as futuras gerações de todo o esforço na questão do aprendizado da escrita. – Maria Montessori

Chegamos ao terceiro aniversário. Talvez sua criança já esteja olhando com mais atenção para palavras com letras grandes impressas por aí. Se não estiver, pode ser que daqui uns seis meses isso comece a acontecer. Entre os três e os quatro anos de idade, a criança passa a notar com cada vez mais avidez as palavras escritas. Algumas, com dois anos já têm essa fascinação e há mesmo casos raros de crianças alfabetizadas bem cedo. Entre todas as variações, porém, Montessori notou uma certa constância: aos três anos o interesse pelo mundo escrito se inicia e, aprendendo primeiro a escrever e depois a ler, a criança desenvolve este aprendizado até tê-lo completo em sua base, aos seis anos. Depois, é claro que o aprendizado continua e tanto a leitura quanto a escrita tornam-se mais e mais sofisticadas. Mas no intervalo de três anos acontecem as descobertas fundamentais, com todo o encanto que deve ter o aprendizado para que seja realmente absorvido pela mente infantil.

Este artigo terá duas bases principais: o livro Pedagogia Científica (cuja edição em inglês está aqui), de Maria Montessori, e a página InfoMontessori, da Associação Montessori Internacional. O objetivo deste texto é contar como acontece o processo de escrita espontânea no método Montessori e de que maneiras ensinamos as crianças a escrever sem terem de passar pelo processo quase doloroso que o aprendizado da escrita assume quando os pequenos começam a aprender as letras entre cinco e sete anos de idade. Ao longo de nosso texto você encontrará hiperlinks que lhe levarão até figuras ou vídeos dos materiais montessorianos que utilizarmos – mas ressaltamos que a menos que sua escolha haja sido homeschooling, o melhor é deixar os materiais para a escola, e não os utilizar em casa.

 À época de Montessori, e hoje ainda em muitas instituições, ensinávamos a criança a escrever depois de ensinar a ler, e tanto o primeiro aprendizado quanto o segundo exigiam que o professor contivesse a atenção das crianças e os movimentos de suas mãos, para que acompanhamssem a instrução e aprendessem, pouco a pouco, a decifrar sinais para, depois, copiá-los. Montessori disse que sua inovação foi deixar de olhar para a escrita e passar a olhar para a criança. Olhando, então, para a criança, conseguiu perceber que há vários processos distintos quando se pensa na escrita e na leitura.

Primeiro, para a escrita, é necessária a educação motora das mãos e dos braços, antes e tudo. É preciso aprender a segurar o lápis, a executar movimentos leves, e a pressionar o lápis contra o papel com a intensidade correta. É necessário também conseguir segurar o papel no lugar. Por outro lado, em segundo lugar, é necessário que as letras sejam conhecidas da criança. Seus sons precisam ser familiares para que faça sentido colocá-las sobre o papel. Ao mesmo tempo, é necessário aprender as formas das letras e a imitá-las com o movimento da mão. É importante aprender que as letras vêm umas ao lado das outras, geralmente com o fim de uma em contato com o início da próxima, na escrita manual. É preciso aprender que o som de uma letra soma-se ao som da seguinte de forma linear e que isso cria sons terceiros – e então, em algum momento, se aprenderá que deste processo nascem as palavras.

Para a leitura, é necessário um outro conjunto de saberes. Lê-se da esquerda para a direita , e de cima para baixo. Lê-se unindo os sons das letras – que já se aprenderam. Ler, porém, é mais que juntar sons e, uma vez oralizados os sons representados na escrita, é necessário perceber a relação entre a escrita, o som e o significado. Quando isso acontece, novamente, nasce a palavra. Mas é trabalho longo e árduo, se for realizado sob pressão e na fase em que a vonta de aprender esta habilidade, em geral, já passou. É mais fácil e mais agradável se as habilidades necessárias tanto à escrita, antes, quanto à leitura, depois, forem aprendidas entre os três e os cinco anos de idade.

Olhando para a criança e percebendo estas necessidades, Montessori desenvolveu para todas as habilidades trabalhadas em sua pedagogia, o que chamou de preparação indireta. Em termos simples, isso quer dizer que para uma atividade ser executada com perfeição, o melhor não é repetí-la à exaustão, mas preparar-se para ela por meio da execução de outras atividades que, ou trabalhem as habilidades necessárias em separado, ou trabalhem as habilidades unidas, mas com menor exigência. Assim, Montessori desenvolveu alguns materiais e emprestou outros, especialmente de Séguin, para trabalhar as bases da escrita.

Todas as atividades que apresentamos para a criança devem ser mostradas da esquerda para a direita, e de cima para baixo, de forma que a criança se acostume a executar este percurso em seu pensamento e com seus olhos e tenha maior facilidade uma vez que tenha letras em suas mãos. Muitos dos materiais montessorianos, como os cilindros, os mapas e os planos geométricos metálicos, têm pegadores pequenos, que exigem da criança a utilização dos mesmos três dedos usados no lápis, mais tarde.

A utilização das mãos é intensa na sala montessoriana, desde o início, e o cuidado com detalhes é sempre presente, por exemplo ao se colocar os últimos cubos da Torre Rosa ou os menores cilindros dos encaixes que você viu acima. Isso ajuda a criança a controlar seus movimentos, assim como ajudam o uso de talheres e materiais de porcelana e vidro em sala. Entretanto, para a escrita, maior refinamento dos sentidos é necessário. Por isso, utilizamos uma série de exercícios que partem principalmente do traçado de formas geométricas e seu preenchimento com linhas, cores e contornos internos para os dedos acostumarem-se ao movimento fino e à pressão do lápis no papel.

A estes e outros exercícios, seguem-se as introduções às letras, para que utilizamos as letras de lixa, talvez escolhendo algumas que possam ser usadas para formar palavras simples mais tarde e mostrando à criança como se traça cada uma com dois dedos sobre a lixa e pronunciando, em seguida, seu som. Em seguida, pedimos à criança que trace ela mesma as letras. Assim, ela poderpa sentir cada símbolo, e por fim nos dizer o som (e não o nome) de cada letra que traçou. Montessori nos dizia para dar à mente somente aquilo que pudermos dar às mãos, de forma que a impressão manual fique presente no cérebro.

Depois de termos certeza de que a criança já aprendeu alguns sons e é capaz de formas pequenas palavras, mesmo com as letras de lixa, e de executarmos exercícios tais quais o pareamento de objetos e miniaturas com as suas letras iniciais, por exemplo, passamos à utilização do alfabeto móvel. O alfabeto móvel é a primeira oportunidade real de escrita da criança, antes da escrita propriamente dita, e pessoalmente me lembro de ser este um de nossos materiais favoritos à época de minha infância.

Os passos seguintes ao alfabeto móvel são de escrita com instrumentos tais quais o giz, canetas hidrográficas e daí por diante, até a caneta e o lápis. O primeiro desta série consiste na utilização de um pequeno quadro negro utilizado em par com uma letra do alfabeto de lixa. Depois de sentir a letra e dizer seu som algumas vezes, traçamos a letra no quadro algumas vezes também, em linha reta (o quadro pode ser marcado com linhas de caligrafia). Depois, é a vez da criança fazê-lo. Claro, a liberdade para que execute o exercício com outras letras é total e mesmo nós devemos apresentar diversas letras com o quadro, uma de cada vez.

A isto segue a introdução ao papel como base para a escrita e uma série de exercícios para a escrita de palavras, que muitas vezes surge espontaneamente e nem sempre na escola. Uma vez que aprenda a escrever, a criança gosta de escrever todas as palavras relativas a objetos que encontra, utilizando à exaustão o que aprendeu, como faz com tudo o que desenvolve em si. Por meio da preparação indireta, o aprendizado da escrita fica muito mais leve e exige menos esforço da criança, tornando-a apta a escrever com maestria – e principalmente com tranquilidade – em geral mais cedo do que ocorreria em escolas que esperam a criança amadurecer intelectualmente até os cinco anos de idade para então inserir as letras, partindo quase que unicamente do estímulo visual.

A partir do aprendizado das letras por seus sons e da formaão de palavras por meio da preparação indireta, a criança adquire tal paixão pela palavra escrita que quase sempre escreve sozinha e, se lhe perguntam quem lhe ensinou a escrever, respondem a verdade: “Ninguém, eu fiz sozinha”.

Em uma das histórias mais belas do método Montessori, as crianças, que vinham há algum tempo exercitando-se com o aparato de desenvolvimento de Montessori, estavam brincando na lage de sua escola em Roma, quando uma criança, escreveu “camino” (chaminé, em italiano, que era o objeto visível mais próximo) no chão com um pedaço de giz e, olhando surpreso para o que havia feito, levantou-se e disse, alto e admirado: “Eu consigo escrever!”. E a isso se seguiu que todas as crianças, antes inconscientes de sua habilidade, pegaram pedaços de giz e escreveram também, descontroladamente, no chão e nas paredes, em uma explosão de escrita e alegria. Isso, hoje, não acontece em nossas escolas – a descoberta maravilhosa da habilidade que se tem de escrever é suave, pois que Montessori aprendeu depois, e nos ensinou, a tornar este caminho o mais tranquilo e satisfatório possível para a criança.  Mas a alegria, tanto do processo quando do resultado, continuam intocadas.

Buscamos aqui trazer alguns aspectos do ensino da escrita no método Montessori. Para conhecer o currículo inteiro deste aspecto do método, você pode iniciar suas pesquisas pelo livro Pedagogia Científica e pela página InfoMontessori, ambos indicados acima. Mas para colocar isso em prática, vale a pena buscar um curso de formação para professores montessorianos. Os materiais nunca são utilizados isoladamente e só funcionam porque se apóiam uns nos outros e nos saberes do professor quanto ao desenvolvimento da criança e aos aspectos didáticos de cada ferramenta de aprendizado.

Ainda assim, esperamos ter sido possível deixar mais ou menos claro o que Montessori quis dizer quando afirmou que  “um método que parta do indivíduo seria decididamente original, muito diferente dos métodos que o precederam. Significaria uma nova era na escrita […] meus estudos em antropologia inspiraram o método, [e] a experiência me deu, como uma surpresa, um título que me parece o mais natural: ‘método da escrita espontânea'”. No próximo artigo desta série, exploraremos o aprendizado da leitura e o porquê deste vir depois da escrita, no método Montessori.

Atenção: Este artigo traz informações sobre a utilização de materiais montessorianos. Para compreender em que contexto utilizá-los para melhor aproveitamento e quais são os outros materiais que se articulam com estes, visite as fontes mencionadas ao longo do texto. Este artigo tem finalidade explanativa – não didática, e propõe-se a explorar o aproveitamento do período sensível da escrita para um aprendizado sem sofrimento.

Períodos Sensíveis

5 comentários

  1. Gabriel, que texto maravilhoso! Minha filha está justamente nessa fase de encantamento pelo mundo da escrita e da leitura e é tão bom vir aqui e encontrar palavras lindas e bem colocadas que me confirmam que estou no caminho certo. Obrigada por nos transmitir esse mundo lindo que é Montessori!

  2. Oi Gabriel, como vai?
    Eu gostaria de saber sobre o material (letras de lixa e alfabeto móvel). As vogais são azuis e as consoantes são confeccionadas na cor vermelha?
    Ou isso, não tem importância alguma no processo de aprendizado das letras?
    Obrigada
    Marisol

  3. Texto incrível! Amo conhecer mais sobre esse método. Fiz o curso de introdução com você, na casulo Montessori aqui em Fortaleza. Fiquei super interessada pelo curso para formação de professores,mas o link do texto não está funcionando. Como faço? Estou cursando pedagogia e vou começar a escrever meu TCC sobre o método e suas grandes e incríveis contribuições.

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