Sobre Brinquedos que Brincam Sozinhos

A criança deve desfrutar plenamente de jogos e brincadeiras os quais deverão estar dirigidos para educação; a sociedade e as autoridades públicas se esforçarão para promover o exercício deste direito – Declaração Universal dos Direitos da Criança

Maria Montessori escreveu que “A brincadeira é o trabalho da criança”, e para Montessori, o trabalho da criança é o que havia de mais precioso no mundo. Por meio de um paralelo à importância dada ao trabalho do adulto, Montessori explica que o da criança é muito mais importante, pois que se o adulto, por seu trabalho, constrói produtos, a criança constrói a própria vida, e a fundação do futuro da espécie humana e da civilização.

Anos depois, a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) reconheceu a magnitude deste trabalho, quando estabeleceu, na Declaração Universal dos Direitos da Criança o direito aos “jogos em brincadeiras”. De forma muito ampla e, infelizmente, pouco delineada, a Declaração busca garantir, ao menos em papel, o direito que a criança tem de brincar.

Antes de continuar, assista a esta fala (legendada) concedida por Susan Linn ao Instituto Alana, acerca do tema “O Excesso de Brinquedos e a Importância do Brincar”:

Embora toda a fala de Linn seja extremamente pertinente, agora que você tem o contexto, queremos pinçar uma frase (a 1’37” de filme):

parece que fazemos tudo em nosso alcance para evitar que as crianças brinquem.

Isso é muito sério.

A cada vez que ligamos a televisão e colocamos em frente nossa criança, e ela vidra os olhos na tela, e não os desgruda até que a TV seja desligada, estamos infringindo a Declaração Universal dos Direitos da Criança, pois que, se não estivesse em frente à TV, estaria brincando – foi isso que se fez por mais de 3.900 anos de civilização, e é graças a isso que chegamos ao ponto que chegamos, é graças a isso que o ser humano existe hoje: graças ao fato de a criança, quando pequena, brincar.

Nos últimos sessenta anos, mais ou menos, com o advento da TV, e o mais recente e progressivamente maior desenvolvimento de programação infantil, a brincadeira vem perdendo espaço. Diferente do que se propõe, a brincadeira não mudou, ela realmente perdeu espaço, foi colocada de canto, em favor do entretenimento inócuo e em favor do divertimento vazio.

Também por volta da década de 1960, brinquedos que brincam sozinhos começaram a surgir. Um exemplo mais recente de brinquedos que brincam sozinhos são robôs de mecanismo simples e repetitivo, que não necessitam da interação da criança uma vez que estejam ligados, um vídeo ilustrativo deste tipo de brinquedo segue:

Os brinquedos que brincam sozinhos são, junto com as telas, dois dos artifícios maiores que usamos para prevenir a brincadeira da criança. Isso diz muito sobre nós. Especialmente, evidencia que acreditamos que uma criança livre não pode se desenvolver. Acreditamos que uma criança só pode aprender por meio da passividade espectadora, e só pode se desenvolver por meio do auxílio de um adulto. Esse adulto pode, inclusive, ser desconhecido. Pode ser um adulto da televisão sobre quem não sabemos mais do que o nome artístico e o horário de aparição na tela, mas permitimos que entre em nossas casa e ajude no desenvolvimento de nossas crianças.

À parte destes, há também os já explicados por Linn, brinquedos feitos a partir de personagens de televisão ou fast-foods. Mesmo com a ação intensa de institutos não governamentais e a promulgação da proibição à publicidade infantil, ainda haverá brinquedos construídos a partir de personagens de programas infantis de televisão. O problema destes, como vimos, é que as crianças não pensam, não imaginam. Elas simplesmente repetem o que as personagens fazem nos desenhos – e se assistir aos desenhos já é danoso, permitir que eles inibam a atividade criativa da criança é ainda pior.

Você viu um brinquedo que brinca sozinho, viu o desequilíbrio emocional que se pretende gerar com ele, viu o baixíssimo potencial de inovação e criatividade que este tipo de brinquedo oferece. Agora veja o que acontece quando se coloca um brinquedo que fica parado até que a criança vá lá e faça alguma coisa. Neste caso, selecionamos como exemplo uma dupla de crianças brincando com incríveis blocos de madeira:

Os blocos de madeira não são um material Montessori. Eles estão ausentes de quase qualquer sala montessoriana. Temos materiais de empilhar, seriar, mas os blocos de construir não são parte do acervo tradicional montessoriano. Entretanto, são um brinquedo perfeito para você ter em casa, são um brinquedo que permite à criança tudo o que é necessário para uma brincadeira saudável. Veja no vídeo o nível de concentração e empenho dos irmãos, especialmente ao final. Veja a negociação (nem sempre tranquila, mas aparentemente saudável) que ocorre, veja a capacidade infantil de escolher, sem frustração, trabalhar isoladamente ou em grupo. Observe várias vezes como eles escolhem peças específicas, trocam, experimentam, selecionam um tipo definido de peça para trabalhar. Observe como a necessidade do menino menor de seriar os prismas por tamanho é respeitada pela irmã mais velha que quer construir algo cada vez mais alto.

Observe tudo.

Nada disso seria possível com um boneco de desenho animado que funcionasse com pilhas.

Nós não podemos, em nome de uma indústria que, só no Brasil, movimenta 9.000.000.000 de reais (isso é 9 x 1000 x 1000 x 1000), retirar de nossas crianças o direito à concentração, ao desenvolvimento de funções cerebrais específicas, à socialização saudável, à criatividade e à imaginação. Nós não podemos privar nossas crianças do melhor que a vida pode lhes oferecer, e nós não podemos privar a humanidade do incrível trabalho da criança: a criação interior do humano. É isso que faz o brinquedo que brinca sozinho. Ele priva a humanidade do que ela tem de mais humano.

Para ajudar você, o Lar Montessori vai lançar, de vez em quando, checklists que deem suporte aos seus esforços para adequar a casa e modificar o que você acredita ser importante em seu ambiente. Como forma de teste desta nova prática, abaixo você encontra um PDF de uma página com um checklist para a escolha o rodízio dos brinquedos que você do seu filho.

Checklist para escolher brinquedos 

 


Faça boas escolhas para as crianças:

Curso Montessori

Brinquedos e Brincadeiras

19 comentários

  1. Tem como não amar o que vocês escrevem? Tudo o que eu precisava ver e ouvir! Estou tendo dificuldades em aplicar o método aqui em casa mas estou me empenhando. Meu maior erro foi expor minha bebê (1 ano e 11meses agora) às telas… Já reduzimos e trocamos os personagens comerciais e fantasiosos. Os brinquedos dela são, com mínima exceção, “parados” mas é sempre bom reforçar e melhorar! Obrigada! Andriele

    1. Andriele, que comentário generoso! Obrigado por suas palavras! Espero que tudo esteja correndo muito bem com sua pequena, que a essa altura já está com dois anos e pouquinho! Abraços!

  2. Emocionandte ver crianças sendo crianças. Obrigada pelo presente de compartilhar esse vídeo. Tenho uma bebê de um ano, estudo Montessori desde que a tive. Vejo que mesmo ela sendo tão novinha os apelos já são cruéis para que nos rendamos a brinquedos comerciais.
    Espero que as crianças de nosso Brasil tenham de fato o direito de brincar.

  3. Gostei muito da forma como vocês abordaram a questão da brincadeira. Minha filha vai fazer 3 aninhos e faz pouco tempo que começou a ver tv. Não temos tv a cabo e não assistimos novela, raramente ligamos nossa tv. Costumo colocar vídeo uma vez ao dia, uns 30 minutos, mas confesso que isso não me deixa tranquila. Faço isso quando bate a canseira mesmo. As pessoas me falam de desenhos educativos, programas educativos, mas eu penso que os efeitos das imagens no desenvolvimento da criança ultrapassam a qualidade do que é mostrado.

  4. Fantástico!! Muito bom o texto, extremamente esclarecedor! Da embasamento a tudo o que acreditamos sobre o brincar!! Obrigada!!

  5. Esse se tornou um dos meus textos prediletos. Incrível. Falando por mim, lembro bem de quando eu era criança. A diferença entre brincar de lego e de Barbie nadadora (ela nadava sozinha…). Realmente, hj consigo analisar e ver que a Barbie me inibia totalmente. Sem falar que eu repetia histórias que eu via em contos de fada ou, céus, nas novelas. E veja… Essa realidade me pegou, com 26 anos. Eu gosto muito de cozinhar. Amo fazer risotos e omeletes. Pois bem. Ganhei, a pedido meu, de casamento, muitas máquinas. De arroz, de pipoca, de omelete, de fritar, etc. E comecei, claro a usá-las. Para limpar demorava tanto que comecei a me questionar e parei de usar. Depois de ler esse texto consigo concluir que eu, como as crianças, estava sendo inibida da minha criatividade na cozinha. Era só colocar na máquina e pronto. Havia perdido a graça, o prazer… E nem ficava tão bom…. Me sinto mais livre agora. O desafio é controlar esses brinquedos… tem sempre alguém que presenteia, ou um amigo que tem… Sei o quanto é desafiador ser diferente….

  6. Agradeço o post!
    Vejo o quanto precisamos mudar em casa! Nossa filha, desde muito pequena, tem dificuldade para brincar sozinha e dar asas à imaginação. A culpa certamente é nossa. Trabalhamos o dia todo e ela fica na escola o dia todo. Tem um desempenho escolar excelente. Mas no brincar, apresenta dificuldade de imaginar. Tem muitos brinquedos, mas não brinca com nenhum. Alguma sugestão? Grata!!! Lis

  7. Perfeito. Cada dia aprendo mais com você. Tenho uma bebê de sete meses e sou uma apaixonada pelo método. Estudei bastante antes de engravidar, agora voltei estudar e é incrível como tudo faz mais sentido agora. O Lar Montessori é perfeito, é a minha maior fonte de estudos. Sempre muito claro, rico e completo. Obrigada por esse trabalho tão lindo que você faz.

  8. Parabéns pela grande qualidade de informações úteis e bem apresentadas, bem fundamentadas teórica e praticamente, com o capricho dos exemplos pessoais e referências, sempre agregando muito valor é demonstrando interesse em nos passar conhecimentos importantes, só tenho à agradecer!

  9. Oh! Gabriel como agradecer à grandiosidade de toda a sua contribuição para com a educação/relação de nossos pequenos e, evolução de tantas mamães e papais? Espero um dia poder retribuir de alguma forma.

    Ontem li o post acima e, hoje, meu filho de dois anos e oito meses pegou a caixa de dominó do pai dele e começou a brincar. Eu fiquei observando e me surpreendi com a quantidade de formas que se pode construir com as peças do dominó. Lembro-me de que quando era criança eu até brinquei de fazer torre ou de colocar as peças em sequência para depois derrubar, porém hoje aprendi com meu filho que as opções vão muito, mas muito além disso: ele construiu caminhos estreitos que viraram estrada para os carrinhos pequenos, depois caminhos mais largos para os carros maiores, fez girar uma peça depois várias ao mesmo tempo, empilhou peças, fez torres de diversas maneiras, alturas e formatos, fez calçada, túnel, rio etc.

    E eis que então, um velho dominó que estava esquecido em uma gaveta virou o brinquedo aberto mais interessante do momento.

    Sou muito feliz e grata por você existir Gabriel.

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