Aspectos de Montessori em Casa

Em algum momento, olhamos para nossas crianças e enxergamos seres humanos. Esse é o princípio de nossa transformação.

A partir daí, buscamos referências, pessoas que pensem como nós, alguém que já pense assim há mais tempo, textos, sugestões de vida, atividades, modos de conviver. Entre um e outro blog, vídeo e grupo, esbarramos em Montessori: no quarto, no respeito, em brinquedos educativos, na liberdade. Muitas das ideias de Montessori são mais fáceis de se entender de maneira abstrata e inexata do que de se aplicar ali, no dia a dia, com a criança de verdade, que se mexe, tem vontades, olhares e, assim queremos, voz. Este texto pretende esclarecer alguns desses aspectos menos claros, e ajudar você na prática, no uso de Montessori com a sua criança. Para isso, trabalharemos cinco pontos importantes: (1) Como ajudar a criança em sua conquista de liberdade; (2) Quanto facilitar as tarefas do dia a dia para a criança; (3) Algumas concepções erradas sobre o quarto montessoriano; (4) A ideia do brinquedo montessoriano e (5) O respeito à criança como pessoa.

1. Como ajudar a criança a construir sua liberdade
O primeiro ponto importante é que a liberdade da criança é construída dentro dela, como uma forma de viver. É muito mais uma sensação de poder escolher a própria vida do que uma maneira de organizar a casa e os comportamentos do adulto.

Uma importante autora montessoriana (Angeline Lillard) diz em seu livro, Montessori: The Science Behind the Genius, que Montessori tem níveis. Muito sucintamente, é o seguinte: num nível macro, existe bastante estrutura – a casa é organizada, as prateleiras, armários, as caixas e as gavetas, a conduta educada de todos, os rituais que permeiam tempos e espaços. Num segundo nível, intermediário, existe uma imensa liberdade – a casa é organizada, mas quem opta por onde estar é a criança, as coisas têm todas o seu lugar, mas a criança escolhe o que usar e quanto, a conduta é sempre polida, mas a criança escolhe socializar ou não, participar ou não, estar sozinha ou estar junto, e finalmente os rituais permeiam tudo, mas a criança pode participar de uma flexibilização de tempos e espaços relativamente grande (pode sugerir quandos e ondes alternativos aos que propomos, por exemplo). Finalmente, num terceiro nível, há estrutura de novo – se a criança escolhe um cômodo, deve respeitar as necessidades dele (não riscar paredes, cuidar do chão de madeira, usar tapetes ou jogos americanos…), se escolhe um objeto, deve utilizá-lo adequadamente e devolver para o lugar de onde tirou, se escolhe socializar, deve fazê-lo de forma respeitosa e gentil, se participa de um ritual deve ser colaborativa.

Costumamos dizer, a partir de Montessori ela mesma, que temos três grandes limites quanto às ações da criança. Primeiro, a criança não pode fazer nada que seja danoso para ela mesma; segundo, nada que seja danoso para outros seres vivos; e finalmente, nada que seja danoso para o ambiente. São limites que consideram não tanto a vontade do adulto, mas muito mais o bem estar coletivo e social. Para além desses princípios, não costuma haver motivos para inibir as ações da criança. Por isso, quando falamos em “liberdade com limites”, em Montessori, não nos referimos a alguma forma de disciplinar crianças para que sejam o que o adulto deseja, mas somente de permitir a expansão da personalidade e das ações da criança para todas as direções construtivas.

Dessa maneira, o que se estabelece não é uma trila estreita de desenvolvimento, pela qual a criança segue “no caminho certo e único”. Ela segue pelo seu próprio caminho, um dos infinitos caminhos possíveis, na direção da autoformação humana para o bem estar individual e social. Montessori falava que a liberdade é um conjunto de “condições favoráveis à vida”, em The 1913 Rome Lectures. Não é uma liberdade favorável só ao fascínio dos pais, à independência da criança ou ao aprendizado mais rápido e eficiente. É direcionada à construção da vida em si.

2. Quanto facilitar as tarefas do dia a dia para a criança
Muitas vezes, quando começamos a preparar a casa para a criança, guardamos em mente que devemos tirar os obstáculos para o desenvolvimento infantil e garantir o acesso a tudo o que importa na casa, para que a criança possa se tornar independente de nós. Isso está correto. Devemos lembrar sempre, também, que as dificuldades nem sempre são obstáculos para o desenvolvimento. Elas podem ser degraus a superar, desafios importantes ou indicadores de que algo foi alcançado, e às vezes devem ser mantidas.

O que me despertou a atenção para a importância dessa percepção foi uma fotografia de uma toalhinha de mesa do tipo “jogo americano” que vinha com os contornos do prato, dos talheres e do copo, como um guia para que a criança usasse como base para pareamento na hora de colocar a mesa para comer, e não errasse a localização de cada objeto. Isso me pareceu não só desnecessário, mas também um impedimento, um passo a mais. Uma das tendências em Montessori – em casa e na escola – é que nós, adultos, adicionemos passos a mais. Montessori acreditava no poder de aprendizado da criança, era uma defensora firme da vida prática no mundo real, com coisas reais, e incluiu em sua proposta pedagógica a ideia de que a criança é capaz de fazer conexões e generalizações de aprendizados. Quando olhamos para o conjunto dos materiais montessorianos, como base teórica para pensarmos a casa, percebemos que eles não incluem repetições de atividades, colas, facilitadores ou reforços. Há somente o mínimo, o essencial para o aprendizado. O que está além do essencial é feito pelo cérebro da criança.

No caso específico do mapa da mesa, uma vez abolido, ele dá lugar à naturalidade: agora, a criança é como o adulto. Come como ele, e deve colocar a mesa como todos os de sua família o fazem. Podemos e devemos ensinar, lentamente, repetidamente, com educação, gentileza, silêncio e sem corrigir desnecessariamente, como é que se coloca a mesa. Isso sim, sempre. A criança o fará aos poucos mais e mais corretamente. Tirar o mapa também nos ajuda a não exigir muito de uma criança muito pequena. Uma criança que está aprendendo a carregar coisas não precisa colocar toda a sua mesa, não há nenhuma necessidade aqui. A independência que ela está adquirindo ainda é física demais. Ela pode, aos poucos, colocar seu prato, sua colher ou garfo, seu copo, sua faca. Mas não precisa fazer tudo isso de uma só vez. Quanto a nós, podemos observar com muito mais maravilhamento, quanto aprendem as crianças quando não há uma “cola” para inibir o aprendizado completo e servir sempre de mestre mudo para as ações infantis.

3. Sobre o quarto montessoriano
O quarto montessoriano como o conhecemos, assim como toda a aplicação de Montessori em casa, é um combinado de aspectos de Montessori e de observações dela sobre a criação das crianças. O propósito do quarto é que ele seja um ambiente de conforto, liberdade e respeito pelas necessidades da criança pequena. O quarto montessoriano comum contém uma cama no chão, uma área de movimento com um espelho à frente do qual pode haver uma barra a 50cm do chão, para que a criança se apoie quando quiser começar a ficar em pé e caminhar, uma prateleira com poucos brinquedos e um guarda-roupas com algumas prateleiras ou gavetas acessíveis para uma seleção de roupas da criança.

Assim desenhado, trata-se de um bom quarto para os primeiros anos de vida da criança. Depois de chegado o tempo em que ela se deite e levanta-se sem dificuldade de uma cama comum, a substituição pode acontecer. A ideia não é que a criança escale a cama para dormir, porque isso não é relaxante. Mas também não desejamos manter a criança em uma cama diferente da nossa depois de ela já ser capaz de dormir em uma semelhante. O espelho também muda de posição depois que a criança fica em pé, e não engatinha mais. Se antes ficava horizontal, agora fica vertical e permite que o corpo inteiro seja visto. Os brinquedos mudam, o acesso às roupas aumenta gradativamente com o aprendizado, e a barra desaparece tão logo seja desnecessária.

Alguns pontos que habitualmente aparecem em quartos montessorianos e que podem ser aperfeiçoados para o bem estar da criança são o excesso de cores e brinquedos, o excesso de decoração para o adulto e a artificialização do ambiente.

Quando tornamos o quarto muito colorido, o ambiente deixa de ser relaxante. As cores para o quarto de dormir precisam ser escolhidas tendo em mente um espaço pacífico e tranquilo, mais do que um espaço “fofo”, “infantil” ou – pior – “de menino(a)”. Assim, uma só cor clara, suave e relaxante é sempre a melhor opção. Quando temos brinquedos em excesso o problema é um pouco maior. Além de tornar o ambiente estimulante, muitos brinquedos tornam uma organização clara e cuidadosa quase impossível, e isso tem alguns efeitos, dois dos quais são que a criança escolha sempre o mesmo brinquedo ou que ela brinque por muito pouco tempo com todos eles e depois se desinteresse e vá buscar outras coisas para fazer pela casa. Com poucos brinquedos bem organizados, a criança consegue escolher mais facilmente e nós conseguimos identificar verdadeiramente pelo que é que ela se interessa.

A decoração do quarto da criança também deve ser cuidadosamente escolhida. Em lugar de estabelecer um “tema” para o quarto e torná-lo um museu de coisas inúteis e padronizadas feito para fascinar adultos, nós podemos colocar, na parece, bem baixinhas, três ou quatro ilustrações que agradem aos principais interessados – os nossos filhos – ou que tenham sido feitas por eles e que eles mesmos tenham escolhido utilizar na decoração. Isso ajuda a criança a se sentir “dona” do ambiente e deixa o quarto mais agradável para ela, menos estimulante e mais tranquilo.

Finalmente, há algumas coisas que fazemos com o quarto da criança que não precisam, mesmo, existir. A mais comum entre elas é cobrir todo o chão do quarto com placas coloridas de borracha. Isso é desnecessário e pode ser prejudicial. Podemos colocar placas de borracha para isolar a cama do frio do chão, e até podemos colocar uma ao lado da cama para proteger crianças de menos de um ano de idade de quedas. Mas colocar as placas em todo o quarto tira a firmeza do chão, importante para o caminhar da criança, e torna o ambiente do quarto dela algo especial, e completamente artificial, em relação ao resto da casa e do mundo. As placas coloridas também são estímulos demais. Uma outra peça bastante usada na decoração dos quartos das crianças é uma casinha de madeira em volta da cama. Ela apareceu inclusive em um programa de televisão do qual eu participei, e ficou em cena pelo bem da cenografia (explicaram-me que o quarto ficaria “muito vazio” sem aquilo, e eu não consegui deixar claro que “muito vazio” era o que eu queria), mas não é uma peça necessária, e pode ser arriscada para a criança, se ela bater a cabeça ali enquanto dorme. Sobretudo, desde há muito tempo que camas não têm mais armações em volta delas e a cama não é uma casinha, ela é mesmo uma cama. Se queremos uma casinha ou uma cabana, podemos fazer uma, num lugar que não seja a cama.

4. A ideia do brinquedo montessoriano
É necessário começar com uma afirmação: o brinquedo montessoriano não existe. Existem materiais montessorianos, e elencos de materiais montessorianos podem ser encontrados no livro “Pedagogia Científica” e em artigos de Angeline Lillard. Mas esses materiais são para a escola. Foram desenvolvidos por Montessori ou por pessoas que estudaram muito seu método, partem de princípios importantes e entram em uma sequência mais ou menos flexível de utilização, contando com diversas apresentações dos professores e usos que se aprende pela leitura dos livros de Montessori ou em cursos de formação especializados. Não são materiais para casa.
Em casa, não podemos usar brinquedos montessorianos, porque isso não é uma coisa que o método inclua. Nem Montessori, nem nenhum de seus seguidores pensou em brinquedos Montessori. O brincar tem sua importância em casa, sim, e precisa acontecer. Por isso, a seleção de bons brinquedos é importante. É melhor conhecer as características importantes dos brinquedos e brincadeiras do que buscar “brinquedos montessorianos” e comprar gato por lebre. Para isso, você pode visitar a categoria sobre Brinquedos e Brincadeiras, aqui no Lar Montessori.

Mais do que brinquedos, importa o brincar: estar com sua criança, com leveza e bom humor, jogando, trocando, conversando, rindo, correndo, vivendo com ela, é muito mais importante do que “o brinquedo certo”. Eu não vou escrever essa frase de novo para não ficar repetitivo, mas você pode ler de novo se quiser. O brincar é mais importante que o brinquedo, e essa importância é imensa.
Para além do brincar e da brincadeira está a vida prática. Repetimos incansavelmente neste blogue: em casa, a casa basta. Na sua casa, você não precisa necessariamente de brinquedos criativos e inovadores. Sua casa, do jeito que ela é, adaptada para a criança, é suficiente. Vocês podem fazer de tudo, e ela pode fazer de tudo, nos cuidados com a casa, consigo e com os outros, desde limpar o vidro de uma janela, até preparar uma salada de frutas para o lanche de vocês.

Antes de terminar o texto, eu gostaria de adicionar: Montessori defendeu por muito tempo que aquilo que desenvolvia era um método de ajuda à vida, e não um método educacional. Precisamos, com bastante urgência, passar a ter isso em vista. Tudo o que queremos com Montessori em casa é ajudar a vida da criança a se desenvolver melhor. Montessori não é uma forma a mais de estimular precocemente seu filho (há como utilizar Montessori para estimulação, em casos de necessidades especiais, para algumas sugestões veja nossa página sobre “Estimulação”, lá em cima). Montessori não é e não deve ser sobre pressão para um desenvolvimento mas rápido ou mais perfeito, nem sobre expectativas exageradas. Nada disso. Montessori é sobre a vida do seu filho, e a melhor maneira de ajudar o seu filho a ser feliz, a se desenvolver bem, a apreciar a própria vida, a viver sem medo, a ter coragem e vontade de enfrentar novos desafios, a amar a vida mais do que a televisão. Montessori é a semente de uma revolução de amor. Retornando ao primeiro ponto de nosso texto, tudo o que queremos é oferecer à criança as “condições favoráveis à vida”.

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20 comentários

  1. Gosto muito da maneira como escreve. Transparece seu fascínio pelas nossas criaturinhas em desenvolvimento 🙂

  2. Ola Gabriel boa tarde !

    A crianca faz seu desenvolvimento. A liberdade da escolha no ambiente preparado pelo adulto conectado e propulsora deste desenvolvimento. Tenho varias duvidas mas aproveito a postagem para consultar se, sem a oportunidade da crianca estudar numa escola montessoriana, mas com os familiares buscando montessori no lar, a liberdade como regra poderia gerar dificuldades como por exemplo grosso modo “a crianca exagerar no modo de buscar fazer faler a propria vontade” ? Entendo os limites da seguranca, do ambiente e dos outros, mas como nao sentimos ainda (2 anos 9 meses) um atenuar da birra, ainda ansiamos por sentir os melhores beneficios do metodo !

  3. espantosa tua relação com Montessori… não leio em inglês, mas pelas traduções que leio poucas pessoas conseguem explicá-la de maneira tão simples e clara. Obrigada por partilhar!

  4. Maravilhoso texto e objetivo também! Também penso que Montessori é um caminho para o ser,é uma forma de educar que permite o ser humano desenvolver e expressar as potencialidades!

  5. Sempre sereno e esclarecedor.

    Gabriel, obrigada por sempre nos aproximar tanto do ensino de Maria Montessori. Como é bom após ler os escritos de Montessori ler os seus e perceber tanta sintonia.

    Obrigada por compartilhar conosco essas pinceladas do Método Montessori.

  6. Adorei o texto, Gabriel! Minha filha estuda hoje no Casulo, aqui em Fortaleza. Conto muito com a ajuda das professoras que sempre tiram minhas dúvidas. Parabéns por esse lindo trabalho. Através do método, eu mesma me sinto mudada! E foi para melhor!
    obs.: Sou a mãe da Marina, cria do Nido desde os 4 meses e que hoje está com 1 ano e 3 meses. Uma lindeza ver minha filha em pleno desenvolvimento e feliz!

  7. Que texto esclarecedor… O que nos falta é ler mais sobre Montessori, do que somente sair seguindo passos soltos achando que estamos melhorando a vida dos nossos filhos…..

  8. Adorei o texto! Como aplicar a filosofia de Montessori em casa se tornou mais leve quando finalmente compreendi que em “em casa, a casa basta”! São tantas atividades propostas nos blogs e nas redes sociais que eu me cansava tentando aplicar isso e me desviando do essencial! Percebi como participar das rotinas cotidianas envolvem muito mais meus filhos e de uma forma bem mais leve! As atividades são interessantes, mas são a cereja do bolo!

  9. Nossa foi a primeira vez que Li sobre o método montessori de uma forma mais clara e completa. Adorei e já anotei as dicas todas para colocar em prática em casa!

  10. Bom dia, eu pensei que um pano com os locais onde por os talheres seria uma facilitador, mas agora entendi que é um passo a mais para a criança e está errado desta forma. Muito bom o texto, adorei.

  11. Gabriel não existe escola montessoriana em minha cidade eu posso praticar homeschooling usando o método exatamente como uma escola montessoriana?

  12. Montei o quarto da minha bebê seguindo as recomendações Montessorianas. Tudo está de acordo, menos a cama que tem a moldura de casinha… 🙁 E lendo o comentário aqui agora faz todo o sentido. ;). Amo seus posts e tendo colocar tudo em prática!

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