Sentar e Olhar a Vida

Quando tenho a chance de visitar casas e escolas e preciso fazer análises de ambientes, aprendi a ter sempre a mesma atitude: sento-me. Esse texto é sobre isso. Sobre quanto precisamos sentar, em nossas vidas com as crianças, para que tudo corra em paz.

Hoje em dia, vivemos bastante sentados. Sentamos diante da televisão, do computador, em grande parte do tempo que passamos nos transportes diversos, em salas de aula, no trabalho, em reuniões, nas casas de amigos, bares e restaurantes, cinemas, teatros. Praticamente tudo aquilo que envolve nossa existência acontece enquanto estamos sentados. E é contemporâneo defender que devemos ficar mais em pé. O que quero sugerir está no meio. Por um lado, devemos concordar com quem diz que passamos tempo demais em cadeiras. Por outro lado, a solução não está só em ficar de pé. Nós também podemos sentar no chão. Quanto sentamos no chão, tudo muda muito de figura.

Olhando a partir do chão, o que era baixo ganha altura, o que tinha “altura normal” fica inalcançável, e o que estava no alto fica invisível. A perspectiva se altera, e as coisas que eram belas vistas de cima são diferentes se vistas de baixo. A casa cuidadosamente decorada de repente não combina mais, é muito cheia, ou muito monocromática. Um espaço por onde nos movíamos sem problemas e o campo de visão amplo são agora interrompidos por obstáculos que impedem os olhos de ver e o corpo de agir.

Sentar liberta. Liberta na medida em que deixamos de ser prisioneiros de nosso ponto de vista mais comum. Nem sempre nos damos conta, mas ver a vida sempre do mesmo jeito é uma prisão. Ver tudo do mesmo jeito, por melhor que seja o jeito, vicia a interpretação da vida e a ação possível. Isso não vale só para a criança, é verdade para a comida, o trabalho, o transporte e tudo o mais. Mas quando pensamos na criança, isso é especialmente verdadeiro. Ver a criança sempre do mesmo jeito (como a esperança do futuro, ou como um ser em evolução, ou como o retrato da perfeição, ou de qualquer outra forma) vicia nossa ação e nos impede de ver a criança de um outro jeito ainda: como um ser em perpétua transformação que precisa de um observador em metamorfose para ser compreendida.

A gente não compreende uma criança que muda ficando igual.

Por isso precisamos sentar no chão. Porque sentar no chão é uma coisa que a gente faz pouco. E fazer coisas que a gente faz pouco mexe com a cabeça, faz com que adotemos de novo a cabeça da criança, a cabeça do iniciante. Não existe mente melhor para aprender do que a mente do iniciante: fresca, bem disposta, inocente, humilde, pronta, ativa, rápida, vazia. A mente de iniciante nos permite olhar em volta e ver um mundo novo.

Primeiro, podemos sentar no quarto. A decoração, que parecia mínima quanto olhada da altura adulta, agora é muito maior. As paredes talvez tenham muito menos espaço em branco vendo daqui, e os obstáculos que nem pareciam existir ficam muito mais claros. Os brinquedos pelo chão, que eram pequenos objetos quase bidimensionais, ganham sua terceira dimensão e são vistos com a mesma clareza que vemos uma escrivaninha com tudo bagunçado, ou uma sala cheia de mobília desorganizada. Os caixotes de brinquedos que nos lembravam organização agora lembram, vistos de perto, uma casa em dia de mudança. A cama que era tão baixinha agora tem uma altura respeitável que, embora possa ser superada até com alguma facilidade, já não é mais como um desnível do chão: é todo um móvel com características só suas e dimensões dignas. Podemos fazer o mesmo pela casa toda. Às vezes nos surpreendemos muito positivamente.

Sentamos na varanda. Entre meia dúzia de pequenos vasos e duas ou três coisinhas de área externa, com água ou tinta. Aquela varanda era tão pequena, dava para tão pouco, acabava em um passo só. E de repente aumentou. Quando a gente senta, a varanda fica grande. Agora, o chão está próximo, deixou de ser só a área dos nossos pés e se tornou a área das nossas mãos. Com uma folha de jornal estendida no chão, podemos transplantar as ervas daninhas todas para um vaso só, podemos semear, fazer sementeiras para os amigos, vizinhos e parentes, podemos triturar adubo orgânico ou misturar os restos triturados para nossos pequenos vasinhos de tempero que deixam de ser o sonho da casa no campo para por um momento virar natureza de verdade ali-tão-perto. Porque estamos sentados, a folhagem baixa das nossas floreiras pequenas esconde o mar de cidade lá fora, e estamos noutro mundo, noutra vida. Sentados.

Se tivermos coragem, ou se desejarmos desafio, podemos sentar na rua. Sentar na rua com nossas crianças é transformador. Há plantas, animaizinhos, degraus, rachaduras, coisas minúsculas que para nós parecem falhas e para a criança são portais para a realidade. Há quem diga que Montessori é bolha. Bolha é o mundo em que vivemos e que nos isola da natureza e de nós mesmos. Mas é uma bolha que fica estourando o tempo todo, em cada rachadura de calçada onde uma flor pequena nasce. Quando eu era pequeno colhia uma florzinha para a minha avó – hoje eu moro onde minha avó morava e dois quarteirões para cima essa florzinha ainda nasce, nas rachaduras entre a calçada e a parede, numa casa de esquina. Mas a gente só descobre essa flor de dois jeitos: sendo criança e sentando no chão.

Montessori defendeu que o adulto deveria se livrar de toda a ira e todo o orgulho, se desfazer de toda a tirania, se vestir com caridade e humilhar-se. Se eu entendi bem, e aos pouquinhos eu vou entendendo essa proposta, nós precisamos de uma transformação profunda. Eu não proponho que ela vá ser fácil, mas acredito mesmo que ela começa conosco sentados no chão. Sentar no chão da calçada com sua criança bem pequena, enquanto ela brinca de passar um galho em barras de ferro no portão ou pula e sobe e pula de novo o degrau do desnível das calçadas de casas diferentes… Isso, aos olhos do mundo, é humilhação. Aos olhos da criança, é ser o maior e melhor humano que o mundo já viu. Aos nossos olhos, se quisermos, pode ser um revolucionário ato de amor. Amor pela criança, pela vida, pelo que existe de verdade, pelo que somos e nos esquecemos.

Assim, sentando no chão algumas vezes por dia, vamos nos dando conta de quanto nos escapa. É toda uma dimensão do mundo que foge à nossa vista. Como nossa mente não funciona em pedaços, ela aprende rápido: depois que a exploração por dimensões ignoradas começa, ela não para mais. O olhar muda em todas as coisas, em todas as direções. Ele muda para além do espaço, e vemos o tempo de outra maneira. Ele muda para além do que só existe, e vemos a vida de outra forma.

Num golpe de sorte daqueles que tiram nosso chão, estaremos sentados e veremos, frente a frente, os olhos maravilhados de nossas crianças. E aí tudo ficará espantosamente claro: a mente de iniciante delas é essa, que vive pertinho do chão. Ela não perde tempo, ela vê o tempo de perto e de perto tudo é maior. Ela não é desastrada. Os obstáculos do ponto de vista dela são outros. Ela não é preguiçosa. O mundo olhando de baixo é maior. Ela não é medrosa. O mundo visto do avesso é esquisito mesmo. E nossa visão de mundo fica de cabeça para baixo. Olhando de baixo para cima é outro mundo que se vê.

Mas é olhando de baixo para cima que vemos o céu. É olhando de baixo para cima que vemos as estrelas que nos guiam, com seu brilho nos olhos das crianças. Aprender a sentar, aprender a olhar, aprender a ver a vida com olhos de iniciante. Não é pouco, mas podemos começar sentados.

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5 comentários

  1. Estou encantada com suas palavras! Por favor não pare nunca de transmitir sua sensibilidade e sabedoria. Parabéns pelo belo trabalho!

  2. Olá Gabriel, sou Ludmila Potrich (GO), estive te ouvindo a ultima vez que esteve aqui. E sou “amante montessoriana”, exercer em casa é meu apredizado diario, conto principalmente com a minha intuiçao. Parabens pelo trabalho, sigamos com força. Bom demais te conhecer.

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