A Tranquilidade de Montessori

Acabo de terminar um curso de materiais sensoriais para profissionais em Juazeiro, BA, e bem no finalzinho, escutei mais uma vez uma pergunta que não é incomum: de onde vem a tranquilidade dos montessorianos? Diversos montessorianos já vieram à cidade, e em todos os casos, segundo a pessoa que perguntava, eram pessoas tranquilas. De onde essa tranquilidade vem? É disso que esse texto trata. Do caminho para chegar à tranquilidade montessoriana.

A primeira coisa que aprendemos em um curso de introdução ou de formação em Montessori é que a criança tem um caminho para percorrer no seu desenvolvimento. Nosso papel pode ser o de adicionar ou remover obstáculos que atrapalhem esse caminho, e nada mais. A gente não decide o caminho, o ritmo, as paradas, os pontos de interesse… Nada. Nós, adultos, colocamos ou tiramos obstáculos, e só.

Só esse primeiro aprendizado funciona, de uma vez, como libertação para o adulto e para a criança. Eu não preciso me preocupar em ditar o caminho, e eu não posso fazer isso. Então, observar é muito mais fácil. Compreender é muito mais fácil. Quando eu não entendo uma criança, mas sei que meu papel não é decidir o caminho, é possível parar, olhar, e entender. A partir da compreensão, consigo identificar a necessidade que conduz ao comportamento, e ajudar na remoção dos obstáculos importantes.

A segunda coisa que aprendemos – essa pode demorar um curso inteiro e alguns anos de prática – é a confiar na criança. Confiar, primeiro, na verdade do caminho. Ele existe e a criança deseja trilhar. Segundo, na capacidade da criança me mostrar esse caminho. E terceiro, na capacidade dela de percorrê-lo.

Se eu conheço o caminho, teoricamente, e conheço a criança, por observação, os riscos são muito menores. Não tenho medo da criança. Não tenho medo de ela não ser o que eu gostaria que ela fosse, porque ela não precisa ser o que eu gostaria que ela fosse. O trabalho é descobrir o que é que ela quer ser, e então ajudar.

Isso não significa nunca guiar a criança. Uma pessoa que deseje escalar uma montanha pode se perder, mesmo com muita vontade de escalar a montanha e ainda que tenha decorado um mapa detalhado. Alguém que deseja escalar uma montanha pode se beneficiar de um guia. E a criança pode se beneficiar do adulto. O adulto conhece os percalços um pouco melhor, e saberá evitar perigos graves e riscos por demais desnecessários. Mas um bom guia também sabe que a maior parte da alegria está no trajeto, na superação e no aprendizado, mais do que no objetivo. Um bom guia insiste, anima, entusiasma, sem forçar. O guia é tranquilo. Conhece o caminho, conhece o trilhante, e caminha em um ritmo, ao mesmo tempo, respeitoso e que exija esforço. Em muitas línguas e na nossa, uma das palavras para o adulto montessoriano é justamente essa: guia.

Finalmente, aprendemos as técnicas. Sabemos que em dia de chuva, um trecho da trilha escorrega, e há outras opções. E sabemos que em dia de sol, é melhor o caminho mais longo, mas mais sombreado. Sabemos que uma criança com muita energia não pode ser apresentada a um material delicado, e precisa de trabalhos grandes, cheios de força, água e alegria. Mas também sabemos que de cada cinquenta crianças com energia demais, uma ou duas vão precisar do trabalho mais delicado da sala. Só ele, com a exigência enorme dele, será capaz de conduzir a criança à paz dela mesma. À verdade dela mesma. É delicado, belo, desafiador e tranquilo.

Dá errado com frequência. Digo sempre que erro com crianças com muito mais frequência do que acerto. E isso continua verdadeiro, ano após ano. Mas aprendemos a sossegar. Aprendemos a olhar filhos e alunos em paz, porque afinal de contas eles sabem o caminho, e querem trilhar. Erros ocasionais não colocam tudo a perder, se temos em comum o objetivo de caminhar em paz até o alto da montanha, parando a cada bela flor e a cada pico com uma vista bonita.

A tranquilidade vem quando, de joelhos, olhamos os olhos da criança em silêncio, e esses olhos nos mostram a esperança, a promessa e a força de toda a humanidade. Nós podemos confiar na força interior da criança, é força de gigantes. Aí, é só ficar atento ao caminho – a cada pequeno passo de todo o longo caminho – e dar um passo de cada vez.

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5 comentários

  1. Gabriel, muito obrigada por mais um texto fantástico. Realmente, é extremamente tranquilizador saber que a criança tem um caminho a ser trilhado, e que nosso trabalho é apenas seguir sua natureza.
    Tenho um questionamento: em crianças que não tiveram vivência anterior em Montessori e que foram super-estimuladas, a própria Montessori( acho que no A Criança) diz que o equilíbrio natural demora mais, o interesse nos materiais é inicialmente baixo e o caos reina. Minha dúvida é justamente como agir para levá-las à encontrar esse equilíbrio e por consequência, seguir sua real natureza. A apresentação dos materiais deve ser diferenciada? As atividades em grupo mais frequentes?

  2. Fico tão tranquila ao ouvir o resumo diário de Montessori escrito por você. Tenho tentado, não é fácil deixar que a criança percorra só o seu caminho, sinto bastante dificuldade na hora de fazer a lição de casa com minha filha que estuda em escola tradicional. Sem sombra de dúvidas o método Montessoriano me ajuda muito a lidar com ela e com certeza me ajudará com meus alunos mesmo que eu venha lecionar em uma escola não Montessoriana.

  3. Gabriel Salomão,
    Muito obrigada por esse e por todos os outros textos do Lar Montessori. Muito obrigada por me apresentar essa linda forma de ver a criança, conviver com ela e guia- la.
    Quando meu filho nasceu, comecei a buscar um meio de dar a ele o melhor de mim e também o melhor do mundo. Foi ai que ouvi falar em Montessori. Comecei a pesquisar e encontrei o Lar Montessori. Me encantei com essa que, para mim, têm sido quase uma filosofia de vida. Eu e meu filho temos nos beneficiado muito dos ensinamentos dessa brilhante mulher que foi Montessori, graças à sua preciosa ajuda.
    Tenho exercitado a confiança na capacidade do meu pequeno e ele me prova ser digno dessa confiança todos os dias. Busco adequar nossa casa às necessidades dele da melhor forma possível e procuro observa-lo quanto posso.
    É claro, eu erro muitíssimo mais do que acerto, mas o texto acima acalentou um pouco o meu coração de mãe. Mais uma vez, muito obrigada por compartilhar conosco de forma tão didatica o seu conhecimento!

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