Montessori, sempre

Na semana que passou, estive em um retiro de meditação, desses em que se fica em silêncio quase o dia inteiro, fazendo coisas bem lentamente e comendo e dormindo pouco. Foi – a melhor palavra – interessante. Mas eu só estou entendendo algumas coisas agora, e acho que outras só vou entender daqui a mais algum tempo. Algo foi especialmente interessante: Montessori está em todos os lugares, e o pensamento de Montessori se materializa onde houver uma criança em liberdade.

No mosteiro onde o retiro aconteceu, durante alguns meses por ano há a possibilidade de crianças participarem das atividades. Uma sobrancelha se elevou quando eu entendi que não era pelo ano todo que elas podiam estar lá. Mas abaixou-se quando explicaram que isso já era revolucionário, porque pelos últimos 2.500 anos as crianças não participavam desse tipo de retiro.

Acontece que havia muita natureza. Mas muita natureza. Ficava dentro de uma floresta e havia pátios gramados, árvores, muitos lagos… e não havia adultos suficientes para vigiar crianças em todos aqueles lugares. Havia todas as proteções básicas, na preparação do ambiente. Mas não mais que isso. E não havia um adulto responsável para cada quatro ou cinco crianças, definitivamente, considerando que as famílias ficavam longe delas por horas a fio. Isso me deu a chance incomum de observar crianças em um estado sublime de liberdade, em um ambiente cuidadosamente preparado, e convivendo com adultos profundamente pacíficos, que, afinal, pretendiam estar lá para sete dias de meditação – uma das crianças perguntou à colega: “como é que nossos pais são legais assim aqui?”.

Em um dos momentos, eu fiquei para trás em uma excursão. Gostei de onde estava e não quis ir embora com a turma. Ia depois, andando. Um desconhecido ficou para trás também. Conhecemo-nos, conversamos, eu disse que trabalhava com Montessori, e ele respondeu: “ah! Por isso você ficou para trás. Preciso conversar com alguém sobre Montessori”. E a isso se seguiu uma tarde inteira de um pai tentando entender se uma escola montessoriana seria a melhor escolha para seus três filhos. Ele decidiu que sim, e isso me alegrou muito, é claro. Mas, sobretudo, fez-me despertar para a presença de Montessori que eu estava deixando passar despercebida ali.

Debaixo de um sino de um metro e meio de diâmetro, dentro de uma torre, brincavam oito ou nove crianças. Não batiam no sino, porque isso colocaria o mosteiro de pernas para o ar. Mas ninguém as impedia. “Ah, Gabriel… nenhuma bateu no sino?”. Alguma batia. Todos os dias. E o mosteiro inteiro reagia, treinado, parando o que estava fazendo para ficar em silêncio por alguns segundos, respirando. E então ela entendia o tamanho da consequência, e não batia mais. E no dia seguinte, outra batia. E assim as coisas seguiam. Com a consequência natural sendo a solução.

Cinco ou seis crianças desciam por uma trilha. Era para ser uma fila, mas estava bagunçando. Uma das crianças parou, falou com as outras em uma língua que eu não conheço, e elas voltaram a andar um pouco mais organizadamente. Brincando ainda, mas no centro da trilha.

Duas crianças estavam brincando diante de estátuas meditantes. Depois de brincarem, e conversarem, e correrem, uma delas achou uma flor no chão, e colocou nas mãos da estátua. A outra começou a fazer o mesmo com folhas secas, flores soltas e pétalas caídas. Eventualmente, algumas flores foram arrancadas para enfeitar a estátua, poucas. Ficou linda. A cena. De duas crianças cuidando de uma estátua. E a estátua ficou linda também. Tivesse vida, sorriria pela pedra.

E assim foram vários e vários dias. Comendo em silência à beira de um lago de flores de lótus, no final do retiro, eu pensava em como enriquece o espírito estar rodeado de crianças livres. E pensava em um mundo no qual elas pudessem continuar em liberdade.

Esse mundo existe. Esse mundo é a sua casa e a minha, a sua escola e a minha. Talvez ele ainda não seja assim, mas ele pode vir a ser. Talve ele tenha sido assim, mas porque a vida pede e a gente corre, tenha mudado. Talvez você não soubesse que ele podia ser assim, e eu estou aqui te contando que ele pode. Ele pode. Quando crianças são deixadas em liberdade em um ambiente preparado, o que nasce é um tipo muito especial de paz: é a paz que não se opõe à guerra. É a paz que nasce do trabalho, do empenho, do esforço, da alegria, da liberdade e da força de vontade. Uma paz que se constrói dentro da criança e transborda para fora, porque é seguro transbordar e a proteção não é mais necessária.

Montessori aparece, como lâminas de grama cortando o tempo, onde menos se sabe dela. Onde menos se pensa sobre ela. Mas onde a criança é vista como um ser inteiro que, livre, pode nos ensinar a humanidade que reside no fundo de nós. Convidemos a criança ao centro, permitamos sua ação total, ensinemos o necessário, mas nem um pouquinho mais do que isso. E vamos ser lembrados, com alegria e gentileza, do melhor que podemos ser.

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8 comentários

  1. Quanta sensibilidade! Quanta inspiração! Que linda a tua forma de ver e disseminar essa forma de viver… Gratidão, sempre!

  2. Gabriel, inspirador e fiquei muito curiosa sobre qual seria este retiro, se puder compartilhar, agradeço.
    E vc tem dicas de escolas montessorianas em São Paulo na zona oeste? Perto de pinheiros? Começando a buscar para minha filha:-)

    Muito obrigad e parabéns pelo trabalho. Sempre me inspira.

  3. Maravilhosa leitura tu me proporcionou nesta madrugada Gabriel,onde pude imaginar o lugar e as crianças,uma paz e ternura,que acalma a alma e deixa leve os pensamentos da gente,transbordando paz e esperança que dias melhores virão, e todas crianças e adultos pudessem viver Montessori. Obrigada e parabéns.

  4. Achei esse texto belíssimo, rico de alma… Tenho dois filhos e tenho desejado muito participar de um retiro junto com eles e meu marido. Não encontro essa possibilidade, pois o argumento dos organizadores é que se há crianças não há silêncio… Pode me fornecer informações sobre esse lugar que respeita a liberdade infantil e acolhe pessoas como você para uma semana tão especial?

  5. Olá!

    Primeiramente quero dizer que estou conhecendo montessori pelos textos publicados aq e parabenizar Gabriel Salomão pela qualidade dos textos. Textos fantasticos, muito bem fundamentados. Sou apaixonada pelos textos aq publicados.

    Sou mãe de um bebê de 8 meses e a partir do site do Lar tenho fundamentado meu dia a dia como mãe. Tambem sou Psicóloga e antes de ter contato com o Lar Montessori, meu conhecimento era bastante superficial.

    Com o intuito de conhecer um pouco mais sobre esse método tão interessante, fiz a inscrição no curso introdutório de vcs, porém não estou conseguindo acessar o conteúdo completo. Gostaria de ter ajuda para pode assistir aos vídeos. Fiz o pagamento, posteriormente recebi um email em que dizia já ser possivel acessar o conteúdo, porém só consigo visualizar o conteúdo ilustrativo. Peço ajuda de vcs!

    Desde já agradeço.

    Edilania de Lima Salvador

    lima.salvador@hotmail.com

    Enviado do Outlook

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