Meu Corpo, Minhas Regras – Diz a Criança

O primeiro princípio de Montessori para o comportamento dos adultos diz:

Nunca toque a criança, a menos que seja convidado por ela de alguma maneira.

É um princípio sério, e da maior importância.

Quase todas as crianças apanham. Quase todas as famílias batem. Enquanto isso não for visto como abuso e violência, enquanto for visto como educação e disciplina, o mundo todo continuará a violentar seus membros mais frágeis.

Mas neste texto não vamos falar sobre palmadas. Vamos falar sobre abraços.

Sem o desejo da criança, abraços, beijos, carinhos, apertos na bochecha, nos braços, nas mãos, nos pés, são todas formas de abuso, mais e menos agressivas, mas igualmente violentas: atravessam o limite dos corpos, e tocam o corpo da criança como se ele não lhe pertencesse.

O estranho, o familiar que nunca antes apareceu, o adulto novo aparece e diz oi para a criança, que não diz oi. E então é impelida a dizer oi. O adulto novo pede um beijo, a criança não se move. E então algum adulto familiar lhe diz: vai, dá um beijo no… e ela precisa avançar, um passo mais incerto que o outro, até o rosto do estranho, e entregar toda sua vulnerabilidade em um beijo num rosto desconhecido. Às vezes, pior, num rosto de alguém que decididamente não gosta.

Adultos banham, trocam, lavam, medicam, espetam, vestem e despem o corpo da criança sem lhe pedir licença, sem avisar, sem esperar por sua autorização ou seu acordo. Os adultos acreditam que fazem tudo isso pelo bem da criança. Se não for trocada, ficará assada, e não lhes passa pela cabeça trocar a criança de dois anos em pé, para que ela participe do processo com autonomia. Se não for banhada ficará doente, mas não nos passa pela cabeça avisar qual a parte do corpo que tocaremos, pelo menos, para que a criança se saiba respeitada.

Não é um problema o abraço em que os dois querem abraçar. Nem o beijo em que os dois querem beijar. Nem o carinho em que os dois querem acariciar. Tudo isso é mais que bem vindo, é necessário à sobrevivência emocional da criança. Mas quando não há acordo, quando a criança é manejada como se seu corpo pertencesse aos adultos, mais que a ela mesma, há muito para mudar.

Alguns adultos acham que brincam quando seguram a criança contra sua vontade. Não é brincadeira se é contra sua vontade. Alguns adultos acham que brincam quando dão sustos nas crianças pegando em seu corpo. Não é brincadeira se ela não autorizou. Alguns adultos acham que ensinam boas maneiras quando forçam a criança a receber carinho de estranhos. Não é carinho se ela não deseja receber.

A criança não tem voz. Mesmo quando ela grita, mesmo quando usa todo o peso de seu corpo e toda a potência de sua garganta, é facilmente calada pelos adultos. Elas precisam que alguém fale por elas. Vamos falar pelas crianças. Vamos dizer a todos que precisarem compreender: Não tocaremos as crianças sem seu completo acordo, convite, ou desejo. As crianças só serão tocadas e só tocarão quando assim desejarem. As crianças serão tocadas com o máximo de respeito, cuidado, e liberdade para exercerem sua autonomia sobre si mesmas.

Ouvimos diariamente gente adulta dizer: o corpo é meu, as regras também. Precisamos ouvir o mesmo em cada olhar hesitante, mão recolhida, criança-escondida-atrás-da-minha-perna, em cada não, dito ou não-dito por nossos pequenos, e permitir que eles aprendam: meu corpo, minhas regras.


É claro que o objetivo deste texto não é impedir que crianças sejam tratadas em situações que envolvam sua saúde, amparadas quando isso envolver sua segurança, ou protegidas de qualquer forma. O objetivo é justamente que sejam protegidas dos maus hábitos dos adultos que com frequência enxergam crianças como propriedade, como inferiores e como seres que devem estar sempre com disposição para a brincadeira e o carinho. Elas precisam ser respeitadas para que cresçam respeitosas e aptas e exigir o respeito que é de seu direito, na infância e na maturidade.


Conheça as ideias de Montessori:

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Paz, Preparação do Adulto, Primeiras Leituras, Violência ,

3 comentários

  1. Concordo plenamente, mas como é difícil repassar essa mensagem. Em geral, infelizmente, há pouco respeito com as crianças, principalmente os bebês, que são “obrigados” a ficar de colo em colo e ainda sem chorar, porque se chora é manhoso, é birrento e aí se vão muitos rótulos… Por um mundo com mais respeito desde o recém nascido eu compartilho e apoio tudo isso! Gratidão… seus textos me tocam profundamente.

  2. Desde bebê, eu e meu companheiro adotamos a prática de imaginar ao redor da criança, um perímetro que lhe pertence.. é o seu território. Então uma simples troca de fraldas começava com um “papai vai trocar a fralda do bebê, papai vai limpar o bumbum do bebê” e assim por diante. Acho o texto perfeito porque toca exatamente neste ponto, por melhores e mais nobres que sejam nossas intenções, é essencial nunca esquecer que aquele corpo pertence a outra pessoa e é preciso autorização para toca-lo. Obrigado.

  3. Incrível este texto!
    E eu penso que o respeito pela criança e por seu corpo vai muito mais além, no que no que se refere aos adultos e ao futuro da criança, existem questões sociais que tem seus raízes no desrespeito a individualidade da criança, como por exemplo, Na minha concepção, o abuso sexual infantil.

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