A Criança que Não Podemos Ver

Um adulto que olhasse para seu passado conseguiria imaginar-se criança, bebê, talvez recém-nascido e, com boa vontade, um feto. Nenhum de nós, ao olhar para o passado, imagina-se célula. Aquele primeiro zigoto, pouco mais que um amontoado organizado de tecidos protegendo um código secreto de desenvolvimento. Um adulto poderia duvidar: “Você diz que eu vim disso? Desse pontinho? Impossível!” E entretanto, veio. Não do ponto, nem do amontoado organizado de tecidos. Mas sobretudo do código secreto protegido por ele: o código genético que comanda todo o desenvolvimento embrionário.

Dentro do útero, no máximo de silêncio e proteção, a primeira célula segue comandos ancestrais e se multiplica em duas. Em quatro. Em milhões. Hoje nós sabemos exatamente como isso ocorre, e quando, porque pudemos invadir a privacidade do embrião e espionar sua transformação em ser humano. Aquilo que não podíamos ver despertava nossa curiosidade e fascínio. Mas depois que a criança nasce, tudo muda.

Quando o bebê surge no mundo, nós acreditamos que estamos vendo tudo. Que não há mais privacidade a invadir. Que aquilo que aparece aos olhos é realmente a verdade. Nós não poderíamos estar mais enganados.

A primeira célula guarda um segredo ancestral: o DNA, que fará dela um embrião, um feto, gente. Mas o corpo recém-nascido guarda um segundo segredo.

No corpo que acabou de nascer, com bilhões de células, vive um novo cofre, que guarda um novo segredo. A criança, nos seus primeiros anos, ainda é um embrião, e ainda tem uma enorme tarefa de transformação diante de si. Ela guarda os primeiros instintos de interação com o ambiente.

Esses instintos primeiros guiarão suas primeiras ações, se transformarão – como a primeira célula se transformou em um corpo – e virão a ser seus esforços, seu trabalho, sua vontade, sua inteligência. A criança recém nascida é um embrião ainda: o embrião da mente humana.

Nos primeiros tempos de sua vida, a criança segue as orientações secretas dentro de si, assim como a primeira célula seguia seus códigos. A criança ainda não pode contar com nossa ajuda verdadeira, porque nós não conhecemos sua verdadeira natureza. Nós só enxergamos o seu exterior.

Se pudermos imaginar que dentro da criança muito nova habita ainda outra, que só aparecerá quando o segundo desenvolvimento embrionário estiver terminado, veremos nossos pequenos com muito mais fascínio. Dentro deles, habita uma nova humanidade, oculta e secreta, que vai se revelar no seu tempo adequado.

Nós não podemos desenvolver a criança por ela, porque só ela sabe seu caminho. Mas podemos cuidar do segundo embrião humano para que ele tenha pelo menos tanto sucesso quanto o primeiro, respeitando seus segredos, confiando em seus esforços, sabendo que ele já fez isso uma vez, fisicamente, e agora faz outra, para criar o que talvez seja o maior milagre biológico do mundo: a personalidade humana.


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A principal referência deste texto é o Capítulo 3 do livro A Criança, de Maria Montessori: O Intervalo Biológico

Desenvolvimento Infantil , , , ,

4 comentários

  1. Caro Gabriel Salomão.

    Estou encantada com seu incansável esforço em nos ajudar a entender, a ajudar e, a respeitar nossos filhos.
    O que você escreve nutrido por tanta dedicação faz jorrar gratidão em meu coração.

  2. Quando te leio, sinto muito por não ter te achado antes que meu filho tivesse nascido. Certamente hoje viveríamos ainda melhor. Você descortina a criança para mim lindamente! ❤❤❤

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