O silêncio nos atemoriza. Para quase todos nós, durante quase todo o tempo, o silêncio é como uma caverna escura: nós não sabemos o que mora lá, o que é que vamos encontrar se aceitarmos o contrato de ousadia e mistério, e adentrarmos o invisível. Por isso, acendemos lanternas: falamos muito, escrevemos muito, trocamos mensagens, colocamos fones de ouvido e música de fundo. O silêncio, como a escuridão, foi acuado e nós fomos soterrados pelo barulho. Milan Kundera, o escritor genial, expressou isso de forma sintética:
(Sim, sei, vocês não sabem de que estou falando porque a beleza desapareceu há muito tempo. Ela desapareceu sob a superfície do barulho – barulho das palavras, barulho dos carros, barulho da música – no qual vivemos constantemente. Está submersa como a Atlântida. Dela só restou uma palavra cujo sentido é a cada ano menos inteligível.)
Porque no silêncio total, na absoluta ausência de som, que dá espaço para que qualquer som, e qualquer sentido, venha a surgir, é que reside toda a beleza do que é fundamentalmente humano. Por essa razão, é no aprendizado do silêncio que mora uma das principais características da educação montessoriana e da preparação do adulto que deseja auxiliar a vida das crianças.
Na última edição de sua obra pedagógica, A Descoberta da Criança, Montessori introduz um capítulo especial: Elevação. É um capítulo que trata especialmente do exercício do silêncio nos ambientes montessorianos. Possivelmente, sua longa estada na Índia lhe tenha auxiliado na percepção da importância desse exercício, que já era presente e importante desde 1907, quando foi feito pela primeira vez. Nesse capítulo, Montessori diz:
O silêncio da imobilidade, por outro lado, deixa a vida comum e o trabalho suspensos, e não tem objetivo prático. Toda sua importância e seu fascínio advêm do fato de que pela suspensão da rotina habitual da vida, este silêncio eleva o indivíduo a um patamar superior. Aqui, não há questão de utilidade, a única atração é a do autodomínio.
Esse silêncio, tão belo, precisa ser explicado. Não se trata, é claro, do silêncio opressor das escolas tradicionais, nem do silêncio imposto dos regimes totalitários – difere inclusive do silêncio educado das crianças bem criadas. Não é nada disso. Trata-se de um silêncio conquistado com muito esforço, pela educação do movimento, pela (re)aquisição do equilíbrio humano natural. Por isso, precisa ser caracterizado como “uma conquista positiva, que precisa ser atingida por meio do conhecimento e da experiência”.
Para isso, é necessário que haja liberdade de movimento, e é necessário que haja tudo aquilo que descrevemos em nosso último artigo, quando falávamos sobre o controle do erro. O controle do erro ajudará a criança a controlar a si mesma. Somente depois que ela já está em um estado de perfeito equilíbrio é que nós entramos com o jogo do silêncio.
O jogo consiste em convidar a criança ao silêncio, como se a convidássemos para conhecer um dos locais mais belos do mundo – e de fato, não é falso o convite. Depois, conversarmos com a criança sobre o que faz barulho em nós. Quando nos mexemos, quando respiramos, quando mexemos qualquer parte do corpo. E em seguida, convidamos a criança a não fazer barulho nenhum.
Esse silêncio pode durar por muito tempo, e as crianças se esforçarão ao máximo para não produzir som algum. Ao final, depois de alguns minutos, você pode se colocar em um cômodo adjacente, ou atrás da porta, e chamar as crianças pelo nome, para que elas, ainda buscando o silêncio total, saiam do cômodo e venham até você.
Montessori escreveu:
A atenção da criança é direcionada aos seus menores movimentos e ela é ensinada a controlar seus atos em todos os detalhes, para obter a imobilidade absoluta, que leva ao silêncio.
Uma das grandes referências populares em silêncio no mundo talvez seja Leo Babauta. Ele é pai de seis filhos e autor de um dos textos mais lidos já publicados aqui no Lar Montessori, O Caminho dos Pais Pacíficos, e que tem tudo a ver com esta série. Leo tem um texto sobre silêncio.
No texto, que é livre de direitos autorais, Leo faz uma linda lista de formas por meio das quais podemos encontrar silêncio em nossas vidas. Os itens são:
- Prefira subtrair a adicionar.
- Aprenda a ser feliz com pouco, ou nada.
- Perceba que o silêncio é belo.
- Encontre a você mesmo no espaço vazio que resulta disso.
- Esvazie um cômodo e não coloque de volta nada, a não ser o que produza quietude.
- Fale pouco, ouça mais, contemple ainda mais.
- Caminhe em silêncio. Veja as folhas se agitarem, caírem em silêncio, sussurrarem no vento.
- Sente-se e não faça nada. Ouça sua mente fazer barulho no silêncio, permita que o barulho diminua.
- Evite vídeos, iPods, livros, a Internet, gadgets portáteis, redes sociais e outras fontes de barulho.
- Fique em silêncio, para que a vida possa falar.
A criança faz silêncio naturalmente. Basta assistir uma criança pequena concentrada em uma atividade que esteja a executar com as mãos, ou fascinada por qualquer fenômeno do mundo, por um animal, uma planta, uma história. Na criança habita o silêncio por excelência, e só ela é capaz de nos ensinar verdadeiramente o que significa ficar quieto. Um ficar quieto que não é produto de repressão adulta, mas da mais íntima vontade e do mais íntimo impulso infantil.
O silêncio – esse silêncio, voluntário, cheio de esforço, cheio de vontade, cheio de autodomínio – é a porta de entrada para a paz. É como uma muralha imensa, forte, grande, firme, de bases sólidas, que precisa ser transposta para que a paz seja alcançada, interiormente, em família, e na escola. Sem silêncio a paz é impossível. E essa muralha precisa ser atravessada. Ou demolida. E para isso basta um sopro, ou menos. Basta ser capaz de fazer nada. De fazer silêncio.
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Você encontra abaixo uma série de vídeos e links, infelizmente metade em inglês, que nos permitem pensar o silêncio em nossas vidas. O primeiro link é para o texto de Leo Babauta, mencionado acima – e o último é para um guia muito rápido de meditação laica.
Criando Silêncio a partir do Caos (inglês): http://zenhabits.net/create-silence/
O Júbilo da Quietude (inglês): http://www.nytimes.com/2012/01/01/opinion/sunday/the-joy-of-quiet.html?_r=2&ref=general&src=me&pagewanted=all&
Aprendendo a Sentar Sozinho (inglês): http://zenhabits.net/alone/
O que as telas estão fazendo conosco (vídeo belíssimo em inglês, mas vale ver mesmo sem entender a língua): https://www.youtube.com/watch?v=5T1-O6pSSHA
Sonoramente descontrolados (reportagem de capa da Revista da Cutura desse mês): http://www.revistadacultura.com.br/revistadacultura/detalhe/14-04-01/Sonoramente_descontrolados.aspx
Meditação em um instante (vídeo legendado): https://www.youtube.com/watch?v=IPrOlrYHsoQ
Compartilhando: “O cheiro e o sabor das berinjelas ao amor de Fermina Daza”, por Fátima Oliveira
http://talubrinandoescritoschapadadoarapari.blogspot.com.br/2014/04/o-cheiro-e-o-sabor-das-berinjelas-ao.html