Atenção: este é um artigo longo. Se necessário, leia em partes.
O tema que dá título a este artigo precisa de mais de um texto para ser trabalhado em alguma completude. Neste primeiro, trataremos dos seguintes temas:
- Características da brincadeira
- Como estas características estão presentes no método Montessori
- Diferenças entre trabalho e brincadeira
- Diferenças entre material e brinquedo
No próximo artigo, trataremos de:
- A presença do trabalho e da brincadeira em casa
- Brincadeiras de fantasia e de realidade
- O trabalho como atividade de contentamento
- Possibilidades de brincadeiras construtivas
Características da Brincadeira & Montessori:
Quando pensamos em brincadeira, não nos vem à mente uma tabela de características, mas uma imagem bonita de crianças reunidas ou individualmente sorridentes, fazendo algo de seu gosto, sem um objetivo exterior que não seja o prazer total em uma atividade. É a imagem mais bela que se pode fazer da infância e, decididamente, a mais merecida.
Na brincadeira, a criança coloca em prática as atividades que mais despertam seu interior: (1) usam objetos variados , (2) interagem com seus colegas, (3) valorizam muito mais o processo do que o produto, (4) divertem-se e (5) mantêm suas mentes abertas e livres.
O uso de diversos objetos é muito importante para os pequenos. Permite que explorem o mundo e usem suas mãos em abundância. Em diversos momentos, as brincadeiras pedem a implicação de todo o corpo, e as crianças caminham, exercitam-se, carregam coisas, transportam, passam. As mãos entram em interação com todo tipo de coisas, permitindo que a criança, primeiro, sinta diversas formas, texturas, temperaturas e, depois, que eduque seu movimento cada vez melhor.
A interação com colegas permite o desenvolvimento da sociabilidade. A criança que troca com seus pares precisa negociar a realidade, submeter-se e fazer valer sua vontade, avaliar seus pontos de vista e os dos colegas, transformar seu comportamento, respeitar e exigir respeito. Aprende a trabalhar com regras, normas e padrões, aprende a alterá-los, debater exceções, compreender contextos. Inclui colegas, aprende a ser incluída (ou não, e a lidar com isso). Visões de mundo distintas e conhecimentos variados se fazem presentes nessas interações e ocorrem mudanças de gosto, personalidade, carinho. Trabalham-se sentimentos, dos mais doces aos mais difíceis, e o raciocínio social necessário à interação.
A criança naturalmente valoriza os processos, mais do que seus fins. Mas na brincadeira, especialmente, o fim é de importância muito menor. Importa fazer, importa fazer de várias maneiras, importa fazer bem e importa repetir o fazer – muitas vezes. A ação é a brincadeira em si, e o resultado representa ou seu final ou um estágio superado, a partir do qual se pode agir de novo e melhor, para tornar a brincadeira mais interessante pela perfeição e pela previsibilidade. Vale dizer: crianças adoram o que é previsível.
Não pode haver brincadeira sem alegria. A brincadeira sem alegria é entendiante – pior, não é brincadeira. O envolvimento da criança nela é sério. Ela leva às últimas consequências as regras do brincar em que se envolve, e se esforça verdadeiramente, mas faz tudo isso com alegria. Não faço nada sem alegria, são os dizeres da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. A criança nos diria o mesmo.
Não há fronteiras na brincadeira. A criança testa tudo, abre-se para o mundo, explora, descobre. Embora exista repetição, a atividade mental nesta repetição muda vez a vez, refina-se, aprofunda-se. Não existe um professor ou um adulto que obriguem tais e tais comportamentos, impedindo outros. A escolha é livre, o tempo é respeitado, o espaço é respeitado – a criança é respeitada e por isso sua mente é livre para trabalhar.
Em Montessori, este é o verbo que usamos: trabalhar. Mas nosso trabalho é especial. Nosso trabalho é encantador, porque parte das características naturais da criança e responde primeiro às suas necessidades internas. Nosso trabalho é composto por atividades pensadas de acordo com os estágios do desenvolvimento infantil e respeita o ritmo de trabalho, o tempo e a necessidade de repetição da criança. Por isso, ele é apaixonante.
No trabalho do ambiente montessoriano, a criança também coloca em prática as atividades que mais despertam seu interior: (1) usam objetos variados , (2) interagem com seus colegas, (3) valorizam muito mais o processo do que o produto, (4) divertem-se e (5) mantêm suas mentes abertas e livres.
Em uma escola montessoriana, haverá cerca de uma centena ou duas de materiais dispostos nas estantes, para crianças até seis anos. Em casa, pode haver muito menos – só serão necessários os trabalhos que corresponderem à fase do desenvolvimento do seu filho, e não de vinte ou trinta crianças. Em sua casa, haverá, talvez, seis atividades em cada ambiente. Os materiais entram em rotação, conforme a criança começa a se interessar por atividades novas e desinteressa-se das antigas, assim, há pouco acúmulo. Além disso, algumas coisas podem ficar sempre à disposição da criança, para seu uso: uma vassoura menor, seus utensílios de cozinha, algumas de suas roupas e uma cesta ou prateleira com livros infantis.
A interação com colegas na escola é natural. Em salas montessorianas o professor não é e nem pode ser o centro de todas as relações. Ele é uma peça chave na mediação entre a criança e os materiais que ela ainda não conhece, e ele é responsável, acima de tudo por observar as crianças e preparar o ambiente de acordo com suas observações. Depois, a sala é das crianças. A interação entre elas é linda e deve acontecer livremente. Nós interferimos se há risco físico ou psico-emocional, mas no todo, trata-se de um Lar das Crianças de fato. Em casa, o lar é da família toda. Se houver irmãos, eles devem ter a oportunidade de interagir por bastante tempo sem muita interferência nossa. Se não houver e algum amigo for bem vindo, trata-se também de uma excelente opção. Por outro lado, a criança deve ser deixada livre para trabalhar sozinha, sem que imponhamos nossa interferência.
Os materiais montessorianos contêm o que chamamos de controle do erro. É um dispositivo que garante que todas as atividades se autocorrigem – o adulto não é responsável por corrigir a criança e nem se espera isso dele. A criança, em interação com o mundo, aperfeiçoa-se. Se ao final a atividade não estiver correta, a criança percebe. Por isso, os pequenos podem focar todos os seus esforços no fazer em si, e não no resultado. Podem ficar seguras de que saberão se o resultado esteve bem, isso ficará evidente e o processo poderá continuar. Não terá havido um resultado imperfeito. A ausência da preocupação com elogios, prêmios ou castigos também é relevante na valorização do processo sobre o produto. (Você pode entender melhor todo este parágrafo aqui e aqui).
Afora trabalhar e interagir, é necessário ser feliz. “Um teste”, diz Montessori, “da correção do processo educacional é a felicidade da criança”. Uma criança que brinca, na acepção comum do termo, é feliz de forma óbvia: ri, corre, grita. Uma criança em Montessori é feliz porque coloca em prática aquilo que lhe é fundamental. Ela é feliz sorrindo, conversando, andando, e utilizando suas mãos ininterruptamente. No vídeo que segue, isto fica evidente. Trata-se de um vídeo institucional, portanto o início e o fim podem ser desinteressantes. O meio demonstra claramente o que queremos dizer aqui:
A criança, quando tem liberdade de agir, trabalhar e interagir com quem quiser, quando pode ser feliz de forma completa e consciente, mantém a mente aberta ao mundo, aberta a encantar-se com ele. Gabriel García Marquez, Prêmio Nobel de Literatura, diz em sua autobiografia:
Não acredito que haja um método melhor do que Montessori para tornar as crianças sensíveis às belezas do mundo e despertar sua curiosidade pelos segredos da vida.
Trabalho e Brincadeira, Material e Brinquedo
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, brinquedo é “passatempo, distração, coisa que não é séria, coisa fácil de fazer”. E isso é bom. Todos nós precisamos brincar, e com as crianças não é diferente. Já vimos que as características da brincadeira são muito relevantes para a formação infantil, e sabemos que a brincadeira também é importante para o adulto. Nós gostamos muito de correr em parques, passear com nossos filhos, levar os animais de estimação para dar uma volta, jantar com amigos e jogar conversa fora. É bom, faz bem e alegra. Mas não é suficiente para a vida.
Para viver com propósito exige esforço, foco, vontade e trabalho. É necessário, para nós, adultos, ter uma direção para caminhar, um norte, e sermos livres para que possamos perseguir o que chamamos de missão ou vocação. Para a criança acontece exatamente da mesma maneira. Entretanto, a missão dela está dada mesmo antes de seu nascimento: seu objetivo é desenvolver-se. Ela caminha para a vida e todo o seu esforço é direcionado para a independência física (entre zero e seis anos), intelectual (entre seis e doze anos) ou social (entre doze e dezoito anos).
Material, para o mesmo dicionário, é algo “prático ou útil, aquilo a partir do qual determinada atividade pode ser desenvolvida e conduzida às suas finalidades específicas”. Parece árido, mas devemos guardar em mente que a finalidade específica de qualquer atividade infantil é ajudar a vida a se desenvolver com plenitude. É com esta finalidade que a criança faz tudo aquilo que faz. Ela não descansa porque, ao contrário de nós, o objetivo de toda sua atividade não é exterior a ela, mas é aquilo de que depende sua própria sobrevivência futura. Se ela se esforça sem cessar, é porque depende de cada um de seus esforços ter uma vida equilibrada e saudável futuramente e, internamente, sabe disso.
O material é diferente do brinquedo não tanto em sua utilização natural pela criança, mas na preocupação adulta em sua construção. A indústria de brinquedos gera uma movimentação de bilhões de dólares anualmente. Só nos Estados Unidos da América são cerca de US$ 22.000.000.000,00 de dólares anuais. Não é muito supor que sua preocupação nada tenha em comum com aquelas de famílias e escolas. A maior parte dos brinquedos é feito com a exclusiva finalidade de vender. É feito para chamar a atenção dos adultos, e por isso traz cores vibrantes, produz muitos sons, faz muitas coisas ao mesmo tempo. Adultos fascinam-se pela abundância. Para que chame a atenção da criança (que prefere a simplicidade, a leveza das cores, um estímulo de cada vez e uma só tarefa para executar) conta com dois aliados: o adulto e a televisão.
O material de desenvolvimento do método montessoriano é feito para ambientes escolares. Entretanto, em casa muitas atividades, especialmente de Vida Prática, podem ser utilizadas. Além disso, os princípios de ordem, beleza e utilidade, assim como as características fundamentais dos materiais podem ser sempre levados em consideração para qualquer objeto que se proporcione para a criança.
Assim, vale dizer algo que nos sirva como balança para que possamos medir nossa atitude diante do brinquedo e da brincadeira: o problema não é a brincadeira, mas o brinquedo. Ou melhor, o problema é qual brinquedo.
Há brinquedos que são construídos tendo em mente a criança, suas necessidades, suas características. Estes, em geral apresentam alguns pontos que podemos levar em consideração:
- São de madeira ou metal;
- Têm poucas cores e muito leves;
- São agradáveis ao toque;
- Apresentam um desafio à criança;
- Não são máquinas e não levam pilha;
- Dependem das mãos da criança para funcionar;
- Não dependem do adulto;
- São de pouco peso;
- São esteticamente agradáveis;
- Se são miniaturas, são miniaturas, e não caricaturas da realidade;
- Têm um objetivo principal – e, talvez, alguns secundários;
- Não subestima a inteligência da criança e está atento às fases do seu desenvolvimento.
Ao escolher um objeto, um presente, um brinquedo ou um material para as crianças, levar tudo isso em consideração nos ajudará a apresentar coisas melhores e a proporcionar momentos de brincadeira – ou de trabalho – verdadeiros, realmente prazerosos e que deverão ajudar a criança, fundamentalmente, a ser feliz.
Em nosso próximo texto, exploraremos as dimensões do trabalho e da brincadeira em casa e na escola, assim como as diferentes formas do trabalhar e do brincar em família. Será brevemente abordada também a questão das diferenças entre imaginação e fantasia.
Oi Gabriel! Sou professora em Vancouver, no Canada de “Casa”. Fui formada pelo Montessori Training Centre of BC associado a AMI. Aqui na escola eu converso frequentemente com meus pais sobre a questao do uso da palavra “work”. Explico sempre que Maria Montessori usou a palavra “work” para determinar para os pais a importancia do que estava acontecendo dentro da sala de aula, isto e, a formacao de carater e da personalidade da crianca. Na verdade, para ela, o que as criancas estavam fazendo dentro da sala de aula era sim “play” mas “play” com materiais cientificamente desenvolvidos, com um proposito racional por tras. Eu sempre comento com os pais dos alunos que so porque chamamos nossas atividades de “work” nao significa que nossas criancas as encaram como “work”, uma palavra que tomou uma conotacao pessima por causa da mente adulta. E se for para pensar bem, as pessoas mais felizes e mais bem sucedidas neese mundo, tem seu “work” como “play”! Adorei o post, estou devorando o blog! As vezes tento explicar Montessori em portugues e me faltam as palavras, jargoes, e conceitos. Ainda bem que achei seu blog!
Lendo esse comentário depois de conhecer você, alegro-me mais. Obrigado!
adorei legal eu leio rapido mais entendi obrigado tchau bjs
Muito bom, Gabriel! Parabéns! Os textos são claros, bem escritas, trazem muito do teu entusiasmo e são em perfeita consonância com o que Montessori diz. É muito bom te ler