A Transformação do Adulto em Adulto Preparado

A criança vive em estado constante de cerceamento e medo, de angústia, incerteza e falta de poder. Sobrevive em um ambiente via de regra agressivo e opressor, permeado por obstáculos, armadilhas e impedimentos. Vive, dizia Montessori, uma vida de um escravo e um fugitivo. É necessário salvar a criança, insistia ela – e para isso, é necessário modificar o adulto.

Este texto é um especial de Dia das Crianças. Ele é grande, denso, cheio de informações e, talvez, um pouco pesado. Leia-o todo de uma vez, e depois leia em partes. Para ajudar, dividimos o texto em partes menores. Depois da primeira leitura – do texto todo – você pode ler bem devagar, retornando várias vezes ao que achar necessário. Nós, do Lar Montessori, não esperamos que você se transforme do dia 12 para o dia 13 de outubro. Esperamos que você se esforce muito, muitíssimo, para dar os primeiros passos, e então não parar mais.

 

Como uma introdução

A criança precisa do adulto. Ela precisa que o adulto a guie, ajude, ampare, proteja. Precisa que ele prepare o ambiente e a si mesmo, precisa que o mundo lhe seja apresentado de forma sedutora, interessante, cheia de encanto. Ela precisa de norte, certeza, chão, suporte. Ela precisa de natureza, tempo aberto e longo, flexível e amplo, precisa de espaço sem e com limite, espaço útil, ferramentas, brinquedos, materiais de trabalho e esforço físico e intelectual. E precisa de um adulto que ajude com tudo isso, e dê a ela tudo o que for necessário para a longa e nobre caminhada para a vida – a conquista contínua de sua independência biofísica, intelectual, social e psicológica, e da percepção de sua integração total com os outros humanos e com o universo.

Acontece, porém, que erramos muito em tudo isso. Nós falhamos, e com mais frequência do que acertamos, ao guiar a criança, ao ajudar a criança, ao dar suporte e condições adequadas para o surgimento e o desabrochar dos fenômenos físicos e psicológicos naturais de seu desenvolvimento. A ideia deste texto é, primeiro, ajudar você a reconhecer a multiplicidade de falhas em que incorremos em nosso comportamento para com a criança e, em seguida, ajudar você a enxergar a você mesmo e ao mundo de forma tal que, aos poucos, você se reconstrua de fora para dentro (isso, de fora para dentro. Você leu certo.) e possa ser um adulto cada vez melhor para as crianças que vivem com você ou com quem você trabalha. Para todo esse texto, usaremos citações e paráfrases do livro A Criança, de Maria Montessori.

Os Erros do Adulto

Montessori diz, em A Criança:

“O adulto não tem compreendido a criança e o adolescente; em consequência, trava contra eles uma luta perene. O remédio não consiste em fazer o adulto aprender alguma coisa ou integrar uma cultura deficiente. Não. É preciso partir de uma base diferente. E necessário que o adulto encontre em si mesmo o erro ignorado que o impede de ver a criança.”

O erro ignorado de que Montessori nos fala é uma cegueira interna que faria lembrar Saramago quando nos diz, com a ênfase da epígrafe, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Essa cegueira é daquelas consagradas pelas religiões do mundo, que muito antes da ciência vinham trazendo à civilização a necessidade de uma crença interior para que um comportamento exterior se fizesse verdadeiro e eficaz. Um olhar cheio de fé que permitisse crer para ver.

A crença fundamental, a verdade fundamental, que necessitamos ter dentro de nós, é a de que a criança é um ser vivo radicalmente diferente do adulto, e que merece não só seu amor e seu respeito, mas mais ainda: sua reverência. E o erro fundamental do adulto é a atitude emocional oposta a essa.

O adulto, em relação à criança, enche-se de orgulho. Acredita-se, como canta Vinícius, “amo e senhor do material”, mas ainda como canta o Poeta, o adulto “pode estar redondamente enganado. No mais das vezes ela anda distante, num mundo lírico e confuso, cheio de aventura e magia, e o adulto nem sequer toca sua alma”.

O adulto se crê superior à criança, verdadeiramente, sem que haja maldade ou perversão alguma em seu pensamento, de forma intencional. Ele se crê, porque maior, mais capaz, mais íntegro em seu caráter, forte em sua fibra moral, firme em seus princípios de vida. Sólido, em seus hábitos formados ao longo de uma vida de repetições. E esse adulto, autocentrado, tem certeza de que pode, por meio de seus esforços, suas tentativas, seu trabalho, formar a criança. Na verdade, diz Montessori, é a criança quem forma o homem.

Esse orgulho, essa noção de que somos superiores, mais capazes, e responsáveis pelo progresso intelectual, físico e moral da criança, nos pesa imensamente, cansa e aflige. É um fardo grande demais para que possamos carregar e, então, iramo-nos contra aqueles que julgamos serem os responsáveis por todo o peso. Iramo-nos contra a criança que, por um lado depende de nós para tudo, e por outro lado não facilita o que julgamos ser nosso trabalho.

A criança não se submete às nossas vontades como gostaríamos. Não é tão submissa quanto desejávamos que fosse. Do alto de nossa torre de orgulho, iramo-nos, soberanos da vontade de nossos filhos e alunos. Tiramos na concepção mais pura do termo: aqueles em quem a ira surge misturada ao orgulho e à certeza do direito natural à obediência. Agimos com a criança no modelo da aristocracia de Luís XIV que, num mítico ímpeto de arrogância, proferiu muito certo de si: “O Estado sou Eu!” e que, quando todas as suas carruagens chegavam à hora marcada, reclamava: “Eu quase que esperei”.

Não admitimos a hipótese de estarmos errados e a criança estar certa. De nos desobedecer e, pasmem, ter razão. A criança, sob nenhuma condição, pode ser diferente do adulto e, ainda assim, ser perfeita. O adulto, diz Montessori, se enxerga como uma “Pedra de Toque”, capaz de testar, pela reação que ele mesmo tem ao comportamento da criança, seu grau de pureza – como a pedra faz com os metais preciosos. Se destoa do esperado pelo adulto, então está, desde o princípio, errado, e essa é uma posição nunca aberta para debate.

Esse comportamento que, sem ser egoísta porque é cheio de amor e sacrifício, é ainda assim egocêntrico. Coloca o eu, do adulto, no centro das referências dele mesmo sobre o mundo, e força a criança a se adaptar ao que quer que o adulto considere positivo ou moralmente adequado.

Para Maria Montessori, o adulto não pode se considerar o centro do universo. No pensamento de nossa precursora, o universo não tem um centro. Ele é um todo, equilibrado e organizado, mantido pelos papéis cumpridos por todos os seres que, não só o habitam, mas o fazem mesmo. Montessori chama a esses papéis, cumpridos por todos os seres, de papéis cósmicos. Ela diz:

“Os animais produzem mais do que exigem suas necessidades; da sua atividade resulta sempre um excedente imensamente superior aos requisitos diretos da preservação da espécie. Consequentemente, são todos operários do universo e cumpridores das leis universais.”

Como exemplos, Montessori oferece as abelhas, que polinizam as flores e possibilitam a vida das plantas e do que delas depende, enquanto mantém a vida de sua espécie e sua comunidade. Oferece também os animais que devoram os corpos mortos de outros animais e os que se alimentam dos detritos que, de outra forma, apodreceriam sobre a terra.

Todos os seres contribuiriam para o equilíbrio universal, e o homem não deveria ser exceção. O papel cósmico do homem é a criação da supernatureza. Se no início o homem vivia da natureza, diz Montessori, aos poucos criou para si mesmo uma forma de viver que não depende integralmente dela. “O homem vive do homem”, diz, em um ambiente complexo que chama de supernatureza. Isso pode ser muito bom – possibilita as vantagens da forma de vida que temos hoje, em comparação com a vida dos caçadores-coletores da Idade da Pedra Lascada. Entretanto, nós nos distanciamos demais da natureza, em nome da supernatureza que criamos. E a criança, com isso, foi distanciada de suas tendências naturais:

“Tudo é excessivamente regrado, demasiado fechado e rápido. Não só o ritmo acelerado de vida do adulto passou a constituir um obstáculo à criança, mas o advento da máquina, que arrasta para longe como um vento impetuoso, privou-a até mesmo dos últimos recantos onde refugiar-se. Em consequência, está impossibilitade de viver ativamente. Os cuidados que lhe dedicam consistem em salvar-lhe a vida dos perigos que se multiplicaram e que a atormentam exteriormente. Mas, na realidade, a criança é um fugitivo no mundo, um ser inerte, um escravo. Ninguém pensa na necessidade de criar para ela um ambiente de vida adequado; não se reflete que ela tem exigências de ação e de trabalho.”

As exigências de ação e trabalho da criança são profundamente diferentes das exigências do adulto. Enquanto o adulto “só ganha p’ra juntar” – para continuar citando Vinícius -, a criança trabalha para construir a si mesma, e para construir a humanidade. O adulto trabalha pela produção, para agregar um resultado final ao mundo: uma ideia, um objeto, uma obra. A criança, por outro lado, não tem como objetivo a construção de qualquer coisa externa a ela mesmo – a criança almeja, de forma inconsciente, é claro, a sua própria construção. Ela deseja fazer-se para na vida e para o mundo. Seu trabalho é produzir a si mesma. A contribuição que dá à humanidade é justamente a humanidade em si, na forma de um indivíduo que busca a perfeição de seu desenvolvimento por meio do trabalho manual. E aos que chegam a considerar que somente mais um indivíduo talvez não seja um trabalho tão fundamental em um mundo de 7.000.000.000 de habitantes, basta por um momento pensar em Gandhi e Hitler, em Madre Teresa e George Bush.

Nós devemos, portanto, propiciar os meios adequados de trabalho para a criança pequena. Devemos preparar seu ambiente, fornecer os brinquedos ou materiais adequados, os melhores espaços possíveis. Tudo isso é conhecimento técnico importante, e o Lar Montessori tem os primeiros passos para você na barra à direita (para quem está navegando no modo tradicional, e não em dispositivos móveis) com as Categorias de nossos textos. Você pode ler sobre o que quiser ali. Neste texto, iremos nos alongar mais com as modificações interiores e com as atitudes para com a criança.

A Correção dos Erros

Para que sejamos capazes de ajudar nossos pequenos, para que nos tornemos adultos preparados, há duas esferas nas quais devemos agir. Precisamos realizar um trabalho de ordem técnico-científica e um de ordem moral.

O primeiro trabalho que devemos realizar é exterior, mesmo, é técnico. Montessori enfatiza isso quando diz que, por meio do esforço por uma prática correta nós nos tornaríamos conscientes de nossas falhas internas e nos esforçaríamos por sua reparação.

O passo inicial que precisamos dar na direção dessa nova busca é aprender a confiar na criança. Confiar, principalmente, em que a criança vá se desenvolver adequadamente pelo trabalho com as mãos. Se pudermos confiar nisso, e podemos, porque toda sorte de pesquisa científica recente aponta exatamente para essa verdade, conseguiremos colocar as nossas mãos atrás das costas todas as vezes que tivermos o ímpeto de interromper uma criança que está trabalhando ou ajudar uma criança que, embora esteja enfrentando dificuldades, está tentando trabalhar. “Nunca”, dizia Montessori, “ajude uma criança com uma tarefa na qual ela sente que pode ter sucesso”.

Confiar na criança não é lá muito simples, e não basta para isso que nos inspiremos internamente e tomemos a decisão correta. É necessário um grau adequado de conhecimento, paciência e observação. O conhecimento você adquirirá lendo e estudando o desenvolvimento infantil, especialmente nos aspectos psicomotores, se sua criança tem até três anos, mas também sobre os aspectos cognitivos desse desenvolvimento.

A atitude prática mais útil aqui é aprender a observar. Cultivar o saudável hábito de um diário sobre sua criança é muito adequado. Em uma época na qual tínhamos mais tempo, era hábito de muita gente manter um diário pessoal. Com a exterminação do tempo pelo trabalho 24h, carregado para casa nos smartphones, tablets e computadores, e com a valorização dessa escravização pelo discurso atual, nós perdemos a valorização do tempo pessoal, e com isso práticas singelas como a confecção de um diário se tornaram quase impossíveis de serem realizadas. Faça um grande esforço – e escreva três ou quatro linhas sobre sua criança todos os dias. Pode ser sobre um hábito, uma evolução, um novo interesse, uma conquista, um trabalho ou uma brincadeira. Três ou quatro linhas. Todos os dias.

Para sermos capazes de observar, precisamos de um esforço anterior: esperar com paciência. Quando a criança tenta colocar uma camiseta ou um sapato, ensaboar-se no banho ou levantar um objeto, ficar de pé ou parar no caminho para observar algo no chão, precisamos aprender a esperar com paciência. Somente se tivermos paciência para esperar será possível assistir ao desabrochar da verdade interior da criança, de seu verdadeiro potencial, de tudo o que ela pode fazer pela humanidade. Se interrompemos o tempo todo, o tempo todo atrapalhamos, ainda que para ajudar.

Enfim, depois desses três aspectos principalmente passivos de nossa ação para com a criança, há um quarto aspecto, mais ativo, e também importantíssimo. Precisamos aprender a seduzir a criança. Seduzir a criança significa que quando quisermos ou precisarmos que ela faça alguma coisa, devemos agir com ela como agimos com um grande amor recente. Ordenar, exigir, mandar, são verbos pouco úteis com crianças. Além de agressivas, essas ações são pouco eficazes, as crianças, especialmente as bem pequenas, ainda não conseguem obedecer, e só nos seguem porque lhes agrada. As mais velhas, embora já consigam, só escolhem obedecer aqueles a quem elas admiram: aquele que espera, abstém-se de ajudas desnecessárias, confia, prepara o ambiente, conhece. E admiram mais ainda aqueles que as seduzem: que agem com amor, com carinho, com cuidado, com fascínio. Com um toque de maravilha na luz dos olhos.

Ainda aqui, é necessário sugerir que todos os adultos leiam os Princípios do Educador Montessoriano, traduzidos pelo Lar Montessori e publicados em inglês pela Association Montessori Internationale.

Iniciada a reforma exterior, é hora de começar a dar atenção ao trabalho interior, de ordem moral, que também precisa ser realizado. Montessori dá um excelente plano de ação quando diz:

“A preparação que nosso método exige do professor [e diríamos, aqui, do adulto] é o autoexame, a renúncia à tirania. Deve expelir do coração a ira e o orgulho, deve saber humilhar-se e revestir-se de caridade. Estas são as disposições que seu espírito deve adquirir, a base essencial da balança, o indispensável ponto de apoio para seu equilíbrio. Nisso consiste a preparação interior: o ponto de partida e a meta.”

Conforme lemos e aceitamos essas palavras de Montessori, e conforme nos esforçamos por praticar os Princípios indicados por ela, ainda que adaptados à realidade familiar (mas jamais adaptados, no caso de escolas), começamos a perceber que há uma incoerência entre o que tentamos praticar e a violência do que sentimos dentro de nós. O salto, quase ornamental, se pode dizer, de tão belo, é o ajustamento do que se sente ao que se quer fazer – e esse ajustamento acontece nas duas direções: de fora para dentro e de dentro para fora. Mas ele começa de fora para dentro. Ele começa na ação correta. E aos poucos, o pensamento correto, o sentimento correto, o olhar correto nascem.

Não devemos, de verdade, sentir culpa profunda, vergonha quase lodosa, por nossos erros. Eles são injustificáveis, é verdade. Eles são terríveis para a criança, é verdade. E não, não existe consolo. Entretanto, todos esses erros são inconscientes, até que venhamos a nomeá-los e compreendê-los. Os nomes, os nomes dos erros que dão origem a todos os outros são: orgulho, ira e tirania, que é a exata soma da ira e do orgulho, os dois anteriores.

Temos como ponto de apoio a percepção dos erros, o autoexame constante. Temos como ponto de apoio o apontamento alheio. Se você não tiver mais ninguém que aponte, pode contar conosco, no Lar Montessori. Fazemos isso pelo menos duas vezes por mês. Temos como ponto de apoio as nossas atitudes exteriores. Um pouco à moda dos teólogos que mandam que ajoelhemos e rezemos, e que dizem que a fé virá por si mesma, nós dizemos sem medo: comporte-se como você acredita que deve, como Montessori propõe. Coloque em prática tudo o que você conseguir. E aos poucos seus olhos se abrirão. Aos poucos, tua ação vai limpar o embaçado das vistas e o brilho do trabalho da criança penetrará no teu coração.

Como uma conclusão

Nestes últimos minutos de Dia das Crianças, e nestes primeiros minutos da vida de tantas crianças pelo mundo, nós desejamos um verdadeiro renascimento em sua casa. Uma nova forma de ver a criança, um jeito muito melhor e mais bonito de ver a vida em si mesma, logo em seu começo. É com essa vontade que esperamos que você receba esse texto – o presente que tentamos dar.

Com um abraço cheio de força para os esforços futuros seus e de sua família, desejamos tudo de bom para sua criança, no dia de hoje e nos próximos.


Venha se transformar conosco!

Curso Montessori


PS: Se mesmo com nossas ressalvas, você continuar se sentindo culpado(a), sugerimos esses dois vídeos: [Vídeo 1][Vídeo 2] e esse livro: [Livro].

Preparação do Adulto

4 comentários

  1. Renascimento, é exatamente isso que sinto que aconteceu em nossa casa depois que começamos a colocar em prática os ensinamentos de Maria Montessori. Sempre com muita maestria Gabriel, seus textos são excelentes e trazem paz a meu coração de mãe. Muito obrigada por compartilhar e nos ajudar a compreender toda a potencialidade de nossas estrelas!

  2. Ah… Gabriel!
    Queria que tivesse a exata noção da transformação que o seu curso de Introdução ao Método provocou e os seus textos provocam na vida de minha família!
    É verdade que os nossos olhos estão se abrindo aos poucos, mas o embaçado já começa a ir embora.
    Gratidão, gratidão, gratidão!

  3. Oi, Gabriel, tudo bem? Estou fazendo o curso online e lendo suas indicações. O link do livro que você sugere aqui no final do texto não está mais disponível. Será que dava, por favor, pra colocar de novo? Muitíssimo grata!

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