O Tempo da Criança

Como você mede o tempo? Em horas? Dias? Minutos? Nós, adultos, usamos de todo tipo de ferramenta e código para medir e controlar o tempo: relógios, calendários, agendas, alarmes, listas, cronogramas. De fato, olhando a civilização parece que dividir e controlar o tempo é uma das maiores façanhas e um dos objetivos mais importantes do humano adulto.

Montessori nos dizia que os conflitos entre o adulto e a criança derivam de uma incompreensão fundamental. O adulto é egocêntrico em relação à criança. Não egoísta, ela enfatiza, mas egocêntrico. Enxerga todos os aspectos da vida a partir do ponto de vista adulto, e é inconsciente do deslocamento necessário para enxergar como criança. Desse egocentrismo do adulto deriva uma forma de incompreensão que impede ao adulto perceber os motivos que subjazem às ações infantis.

Uma das coisas que nós enxergamos somente pelo ponto de vista do adulto é o tempo. Não é por mal. Desde muito cedo – desde quando nós éramos crianças – fomos acostumados a cortar, medir, controlar, restringir o tempo. Disseram que precisávamos ir mais rápido, que estava quase na hora de sair, que já tinha passado da hora de almoçar, que hoje não era dia de correr na quadra, que mais tarde poderíamos fazer algo interessante, mas não agora. Aprendemos que o tempo é escasso, e que precisa ser medido com muito cuidado se quisermos tirar algum proveito dele.

A criança, por outro lado, vive com o tempo de uma maneira muito mais íntima. Para ela, o tempo não é feito de horas, minutos e dias. Mas de vida. O tempo se divide em música, brincadeira, comida, escola, colo, cama. Os cortes do tempo se dão pelo chamado, pelo carinho, pelo grito, pela interrupção feita pelo adulto. E a lógica do tempo é a da repetição, da rotina e do ritual.

A criança precisa, primeiro, de abundância de tempo. Vivemos num tempo em que o adulto trabalha muito mais do que deveria, e tem muito pouco tempo para a criança. Num tempo em que se corre o tempo todo atrás do impossível e do necessário. E nessa era de tanta escassez de tempo, é necessário achar caminhos de abundância para a criança. Se ela puder viver em abundância de tempo, não aceitará, quando adulta, que ele lhe seja roubado. Não aceitará que o tempo de sua vida seja explorado em troca de misérias, e não fará a mesma coisa com outras pessoas.

É necessário que a criança possa brincar por muito tempo, mas mais que isso, que tenha tempo para os afazeres úteis e cheios de propósito de sua vida: que possa passar muito tempo a se vestir e despir, que possa demorar para comer ou lavar as mãos, que passe o tempo que precisar a limpar sua mesa, ou tomar banho, ou escovar os dentes, ou pendurar meias no varal.

Em segundo lugar, é necessário que a criança tenha liberdade para escolher como passar esse tempo abundante que tem. A liberdade importa até quando a abundância não é tanta assim. Se não podemos escolher como passar o tempo, o tempo não é nosso de verdade. A criança deve poder optar inclusive por descansar, não fazer nada, ou observar o que outra pessoa – criança ou adulto – faz.

Na escola montessoriana e na casa montessoriana nós não devemos ter programas de tarefas, exercícios ou brincadeiras. Podemos ter ideias, podemos sugerir coisas, e podemos até pensar em uma sequência de sugestões. Por exemplo, faz sentido brincar ou trabalhar com prendedores antes de ensinar à criança como colocar roupas no varal. Uma habilidade pode ser trabalhada antes da outra, e isso é importante. Mas programas semanais baseados em cores, músicas, animais ou meios de transportes não são uma ideia montessoriana. Basicamente, porque o interesse da criança não segue programas, e nós também não precisamos seguir. Inúmeras vezes dissemos no Lar: em casa, a casa basta. Você pode fazer brincadeiras com sua criança, é claro. Mas a casa com o que ela tem de interessante é suficiente para quase todo o tempo do dia, quase todos os dias, especialmente se, nela, a criança puder escolher o que fazer e o adulto, que observa seu filho, puder perceber seus novos interesses e curiosidades.

Finalmente, é necessário haver liberdade de repetição. Se a criança gostou de uma atividade, isso ocorreu porque ela, de alguma maneira, satisfaz uma necessidade sua de desenvolvimento. Por isso, a oportunidade de repetir a atividade a ajudará a alcançar o próximo passo que busca dar. Isso pode ocorrer com cortes de frutas e verduras, com as roupas do parágrafo anterior, ou com qualquer outro afazer ou atividade.

Se a criança está concentrada, repetindo e repetindo a mesma coisa, essa é uma ocasião da mais alta importância, e sobretudo é isso que devemos evitar interromper. Esse é o nascimento ou o estabelecimento da concentração, a base sobre a qual todo o equilíbrio interior da criança se desenvolve. Por isso, a repetição deve ser respeitada. Não existe um número limite. Montessori viu uma menina repetir um jogo quarenta e duas vezes, e ouviu de professores que lhe contaram de mais de cem repetições. Por isso, se sua filha ou seu filho já montou e desmontou dez vezes a mesma coisa, fique tranquila(o), eles precisam disso. Fique em silêncio, não interrompa, permita que a relação da criança com o tempo se aprofunde, e você verá que, quando as repetições terminam, um estado de profunda serenidade se instaura.

Vivemos com pressa, hoje, acreditando que o tempo não bastará. Mas, sobretudo, é para a criança que ele deve bastar. Se as crianças de hoje puderem ter tempo suficiente, amanhã ele não vai faltar para ninguém. Como é com tudo, também com o tempo elas saberão reconstruir as relações, saberão viver com ele em paz. Um professor magnífico de Ciências Humanas, falecido recentemente, disse algo que eu acredito ser adequado para o final deste texto. Nós aprendemos que tempo é dinheiro, mas isso está errado, diz Candido: “o tempo é o tecido das nossas vidas”. A criança enxerga isso, vive isso, e se nós permitirmos, ela pode nos ensinar a viver assim também.


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selocurso

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3 comentários

  1. Olá Gabriel.
    “Gostou deste texto e quer descobrir mais?” Posso lhe responder que este texto foi o algo mais para mim após ter feito o curso.

  2. Ler esse texto foi um super puxão de orelha em mim. Como sou grata a você por me lembrar que é importante cuidar do tempo na vida de Filipe e na minha também!

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