Ciência, Feminismo e Educação: As Origens do Método Montessori

“As mulheres elas mesmas devem entrar nos ramos da ciência… devem argumentar com seus cérebros, e não seus corações. Mulheres… devem confrontar os homens, debater com eles, trabalhar ao seu lado, se juntar a eles na descoberta da verdade”. (Montessori, 1896)

Esta é uma das muitas falas que compõem parte importante da obra de Montessori – uma década de trabalho intenso e de grande impacto, que a psiquiatra exerceu de 1896 a 1906, e que foi a fundação filosófica, política e social do trabalho pedagógico que desenvolveu depois.

Maria Montessori é conhecida por seu método de suporte ao desenvolvimento infantil – uma das abordagens educacionais mais populares em todo o mundo. Embora sejam poucas as escolas montessorianas (25.000 no mundo e menos de 100 no Brasil), são muitas as características do método Montessori que hoje fazem parte de muitas escolas convencionais: mobília do tamanho das crianças; fala respeitosa entre adultos e crianças; exercícios de desenvolvimento da coordenação motora a partir de atividades da vida diária; utilização de materiais concretos para aprendizado de conteúdos abstratos… A lista é longa.

Se foi por seu método que Montessori se tornou mundialmente conhecida, foi uma combinação de ativismo feminista com rigor acadêmico e científico que deu a Montessori os vislumbres necessários para estruturar uma educação que precisa ser chamada de revolucionária. O artigo de Valeria Babini, “Science, Feminism and Education: the Early Work of Maria Montessori” faz um resumo de sua obra de maior fôlego: “Una donna nuova. Il femminismo scientifico di Maria Montessori”, e é a base para este texto, que será composto principalmente de citações do artigo e de trechos da própria Montessori.

Em 1896, Montessori foi a representante italiana no Congresso Internacional de Mulheres, em Berlim, e foi lá que pronunciou as palavras que abrem este texto. Uma guerra italiana ocorria na Etiópia e Montessori fazia parte da “União Feminista Internacional pela Paz”, cuja pauta principal era a união das mulheres pelo desarmamento universal. As principais contribuições de Montessori para a União vinham de seu conhecimento e sua posição de cientista, médica e psiquiatra. “Para ela”, escreve Valeria Babini, “feminismo, política e ciência eram inextrincavelmente conectados”. Por sua eloquência e relatada beleza, Montessori se tornou a “face” dos movimentos de que fazia parte: pela paz, pela igualdade entre homens e mulheres, pelo sufrágio universal, pela educação das crianças com deficiências.

Pouco tempo depois, em 1899, o Ministro da Instrução Pública apontou Montessori como representante do governo italiano no Conselho Internacional de Mulheres, em Londres – um encontro que tinha como objetivo “reunir todas as representantes do feminismo internacional”. A ideia de enviar representantes ao encontro não era unânime entre os grupos feministas da Itália, mas Montessori foi, e “falou sobre as más condições de trabalho das professoras, e denunciou as condições de trabalho dos menores de idade na Itália. Falou sobre a compreensível insatisfação das mulheres italianas com as leis que controlavam seu trabalho, e apontou para um problema dentro dos próprios movimentos feministas na Itália:” o de que o movimento era feito por mulheres, mas homens estavam na administração das verbas desses mesmos movimentos.

Valeria Babini argumenta no artigo, com abundância de referências históricas, que conforme Montessori desenvolvia seu trabalho nas ciências médicas e seu ativismo feminista, percebia pontos que não podiam ser separados, e dava cada vez mais ênfase a esses pontos. Isso fica evidente quando Montessori trata dos problemas da maternidade da mulher pobre e explorada, e alcança o ápice quando passa a se dedicar à educação das crianças com deficiências. Dirá Babini: “isso deve ser visto à luz dos assuntos que eram mais urgentes para o movimento das mulheres: os direitos dos mais fracos, e em particular a saúde de mulheres e crianças”. O ponto de vista “novo” que o artigo apresenta é que a lógica do movimento feminista sobre a transformação social embasaria uma séries de decisões de Maria Montessori.

O trabalho direto com as crianças e a criação de escolas para crianças que normalmente não teriam uma escola para frequentar era o que se chamava à época de “feminismo prático, que atribuía valor político ao trabalho social desempenhado pelas mulheres, que era uma forma de demonstração ativa de suas capacidades [de cuidar, organizar e administrar], ao mesmo tempo que apontava para as deficiências do estado em prover a população com saúde, higiene, e bem-estar social”.

Montessori se envolvia no “feminismo prático” sem abandonar a ciência – enquanto emergia como uma exímia pesquisadora – e o ativismo. Unindo seus três interesses, em 1899 Montessori funda a “Liga Nacional para o Cuidado e a Educação das Crianças com Deficiências”. “Nesta fase de seu envolvimento com a medicina social e o feminismo, sua atividade como palestrante foi especialmente significativa”. Em numerosas cidades italianas, Montessori “falou alternadamente sobre as crianças com deficiências e a ‘nova mulher’ Seus públicos eram predominantemente femininos”.

O Feminismo Científico

“A contribuição particular de Montessori para o movimento feminista, mas não sua única, foi encorajar mulheres a terem independência financeira e uma forte identidade intelectual, e atacar o monopólio masculino das ciências”.

O termo “feminismo científico” se refere ao desmantelamento desse monopólio. Isso era também fundamental porque enquanto a ciência pertencesse aos homens, permaneceria em voga a noção da “inferioridade da mulher. [E] Essa noção, sustentadas por cientistas, era usada para legitimar, e perpetuar, a discriminação contra mulheres e sua participação na vida social e política do país”.

Montessori não poupava nem a si mesma de riscos e retaliações. Em um congresso, declarou que “eram os cientistas, e não a ciência, que estavam contra a mulher”. Mas os cientistas a que se referia na situação eram os colegas de universidade, e “ela acusava de misoginia e má prática da ciência aqueles que tinham controle sobre sua profissão e sua carreira”.

A Socialização da “Função Materna”

O passo mais radical de Montessori dentro do feminismo, de acordo com o artigo de Valeria Babini, foi a defesa de que as mulheres pudessem escolher ter ou não ter filhos. “A concepção da maternidade como uma escolha estava praticamente ausente dos debates políticos italianos e do feminismo [no período]; tanto que era uma ideia expressa somente por uma minoria dentro do partido anarquista, que era o único partido a tocar na questão”.

Para aquelas que escolhiam ter filhos, Montessori tinha propostas também. Defendia a “maternidade social”, em que o trabalho de criar e educar as crianças fosse compartilhado com a escola, de forma que a escola funcionasse também como um fator libertador. No ato da fundação de uma das Casas das Crianças, Montessori disse:

““Estamos, então, tornando comunitária a ‘função maternal’, um dever materno, na Casa. Podemos ver nesse ato a solução de muitos dos problemas das mulheres que pareciam sem solução. O que acontecerá com a casa, se pergunta então, se a mulher sair dela [para trabalhar, como o homem]? A casa se transformará e assumirá as funções da mulher. […] Eu acredito que na sociedade do futuro outras formas de vida comunitária virão” (Discurso publicado no livro The Discovery of the Child).

A socialização da “função maternal” talvez tenha sido o ponto de partida para a escolha do nome que Montessori deu às suas instituições de educação infantil: Casa das Crianças. A jornalista Olga Lodi era uma líder e uma voz importante no movimento pelo sufrágio universal na Itália – que, na época, fracassou – e era grande amiga de Montessori e sua companheira na luta social que travavam. Foi ela quem, em uma conversa, sugeriu o nome de Casa das Crianças para o espaço que Montessori iniciava.

Segundo Valeria Babini, Montessori enxergava na educação “a verdadeira finalidade do feminismo, por que era o ponto de partida para a verdadeira revolução pedagógica que viria a alterar as próprias raízes das relações entre os sexos e a partir daí a sociedade em si”. Por isso, por um lado, Montessori incitava as mães a “educarem seus filhos tendo em vista a criação do ‘novo ser humano’ de amanhã”.

A Revolução Montessoriana

Décadas mais tarde, em seu magnífico livro Mente Absorvente, Montessori escreve que:

“É uma revolução que pregamos quando falamos de educação. É uma revolução, porquanto tudo o que conhecemos será transformado. De fato, considero-a a última revolução. […] A nova educação é uma revolução, mas sem violência. É a revolução não-violenta. Depois dela, se triunfar, a revolução violenta será, para sempre, impossível”.

Os passos, muito práticos, dessa revolução, passavam antes de tudo por uma Educação para Um Novo Mundo – tema recorrente na obra de Montessori que dá nome a um de seus livros. Além disso, coloca Babini: “As crianças não seriam mais um impedimento para que a mulher pudesse trabalhar: a socialização da escola, da enfermaria, e da cozinha, eram estágios no longo processo que finalmente permitira à mulher se tornar ‘como o homem, um indivíduo humano livre, um trabalhador na sociedade, e como o homem ela encontraria conforto e repouso na sua casa transformada”.

Na altura da fundação da casa das crianças, no início do século XX, “o feminismo e a medicina social pareciam para ela instrumentos inadequados: a pedagogia, ela previa, ‘se tornará a nova medicina social’, mas ela falava de sua própria pedagogia, que por sua vez também era construída sobre valores do feminismo. Mais especialmente, a liberdade, a autonomia, e a difusão da paz no mundo, temas caros ao movimento das mulheres”.

Já no ápice de suas descobertas, quando publica Da Infância à Adolescência, Montessori termina o livro apontando-nos o caminho para a Nova Humanidade: “Há algo na humanidade que paira acima dela mesma: ela é capaz de compreender o que é necessário para criar um mundo muito poderoso, muito rico, muito puro. Há somente um caminho: que cada indivíduo saiba como superar as tentações do poder e da posse”.

Depois de mais de 50 anos, lemos ainda os ecos das ideias que Montessori defendeu com avidez no início de sua carreira: é necessário socializar a casa e a criação das crianças. É preciso buscar em união a criação de um mundo-além-da-posse, um mundo em que o exercício de poder não seja mais importante do que a cooperação entre todos: mulheres e homens, escola e família, adulto e criança.

Anos atrás publiquei no Lar Montessori uma coletânea de citações apontando para o feminismo de Maria Montessori. Este é um novo texto que, no fundo, não é meu. As informações contidas aqui estão todas no artigo de Valeria Babini e nos livros de Maria Montessori. Neste dia 8 de março não me cabe falar por Montessori, mas abrir espaço para que ela e as historiadoras de sua vida possam falar por aqui.

A vida política e social fica frequentemente escondida pelas biografias muito breves e por edições de suas obras que não ressaltam este aspecto de seu trabalho. Mas, como escreve Joy Rankin, em um brilhante artigo sobre o feminismo de Montessori, “Ela procurou transformar a educação das crianças, não para mudar as crianças, mas para mudar o mundo”.


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As principais referências para este texto são:

  • Science, Feminism and Education: the Early Work of Maria Montessori, artigo de Valeria Babini;
  • Maria Montessori Through the Seasons of the Method, livro de Paola Trabalzini;
  • Mente Absorvente, livro de Maria Montessori;
  • The Discovery of the Child, livro de Maria Montessori;
  • Da Infância à Adolescência, livro de Maria Montessori;
  • Dr. Maria Montessori, Feminist, de Joy Lisi Rankin.

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