Ataques a Escolas: o que mudar para que as coisas mudem

O aperto na boca do estômago é uma reação adequada a situações de muito medo ou grande ameaça. O pânico e o desespero também. Não são reações eficazes, não ajudam a resolver o problema, mas são reações adequadas. Quero dizer: se você sente essas coisas, isso só significa que você é um ser humano inteiro, com as emoções todas que um ser humano tem, e todas as emoções são válidas em épocas como a que estamos vivendo.

Você e eu sabemos que estamos falando dos atentados cometidos contra escolas no Brasil inteiro. Não são poucos, porque um só atentado já seria muito. E cada um deles é potencializado por uma câmara de reverberação composta de grande mídia, rede social e WhatsApp, que fazem o eco, do eco, do eco, a partir de cada tiro e grito disparados.

Nenhum texto pode ter a pretenção de resolver o problema, e este também não tem. Aqui, eu vou tentar fazer duas coisas. A primeira é observar. A psiquiatra italiana Maria Montessori nos ensina a esperar e observar. Neste momento, em desespero e pânico, está difícil fazer isso. Então, eu vou te fazer companhia enquanto pensamos juntos. Em segundo lugar, vou tentar estabelecer algumas relações. Vamos juntos.

O que nós sabemos sobre crianças

Nós ainda sabemos pouco sobre a infância e o cérebro das crianças, mas há alguns pontos em que não cabe dúvida: o cérebro passa por uma fase muito especial nos primeiros anos de vida, e muito do que é vivido neste período fica para sempre conosco, no inconsciente. Nós também sabemos que há períodos especialmente importantes para a formação da socialização humana e sabemos que um deles está na infância e outro na adolescência.

Infelizmente, também sabemos que a infância é alvo diário de violência. A cada seis minutos, um caso de violência contra crianças e adolescentes é registrado no Brasil. São quase meio milhão de casos por ano. Afora os casos registrados, quase todas as crianças brasileiras apanham em casa. E este é só um dos cenários em que crianças pequenas são expostas a stress tóxico em nosso país. Outros casos incluem pobreza e miséria, negligência e insegurança (social, alimentar ou de moradia).

A criança pode ser vítima de violência em casa, pelos abusos dos pais, ou na escola, pelos abusos de professores e colegas, muitas vezes na forma do bullying e da exclusão social. Quando isso acontece com frequência, pouco a pouco o cérebro da criança aprende a permanecer sempre em estado de alerta, sem desligar nunca, e se torna excessivamente sensível a qualquer incidente que tenha jeito de ameaça. Um olhar atravessado de um colega, por exemplo, pode provocar um momento de ira violenta completamente desproporcional, e involuntário, porque o cérebro do colega irado foi torturado até se tornar uma peça extremamente sensível a detalhes que passariam despercebidos para qualquer outra pessoa.

Na adolescência temos, novamente, um período de grande sensibilidade social no cérebro humano. Coisas pequenas e bobas para um adulto ou uma criança (como um colega que prefere continuar comendo do que sair no jardim com você) podem ser muito importantes para um adolescente. Adolescentes que dirigem (mesmo quando dirigem bem) correm riscos muito maiores de acidentes, porque cedem à influência de amigos, e querem os impressionar, colocando as próprias vidas, e as de outras pessoas, em segundo lugar. Em primeiro lugar está olhar do outro, a vontade de ser admirado e querido.

Nos anos recentes, adicionamos mais duas variáveis importantes a esse conjunto de fatores: várias tecnologias novas e um acesso facilitado a armas de fogo.

Os papéis da tecnologia

Do ponto de vista das tecnologias, há pelo menos dois pontos a serem observados: algoritmos de radicalização e socialização virtual.

Algoritmos de Radicalização:

Estou chamando de algoritmos de radicalização a programação de páginas como o YouTube, Facebook, Reddit, Twitter, Instagram e Discord. Em todos esses casos, o objetivo principal dos gestores da plataforma é manter o público preso lá dentro pelo maior tempo possível, e uma descoberta que já fez dez anos ensinou esses gestores que quando o conteúdo é radicalizado gradativamente, a tendência é que as pessoas passem mais e mais tempo lá dentro.

Um exemplo inocente: você vê um vídeo de um gatinho derrubando um vaso de plantas até o final. E aí assiste de novo, porque achou divertido. O algoritmo entende, e te mostra outros. Em poucos dias, você encontrará montagens com cinco ou dez desses vídeos fofos. Se continuar assistindo, é possível que comece a ver vídeos de gatos geniais, ou de gatos fantasiados. E aí, em algum momento, você assistirá a um vídeo sobre “coisas que só quem gosta de gatos vai entender” ou fará um teste para ver se “você é mesmo um conhecedor de gatos”.

Nesse caso, o exemplo é inocente. Mas isso não acontece só com gatos. Pode acontecer com assuntos mais importantes. Uma sequência de vídeos que comece com “os penteados mais engraçados” pode terminar em “penteados perdedores” ou “quem tem cabelos assim devia ter vergonha”. E em um passo além ainda, um primeiro vídeo sobre “se você está se sentindo sozinho, assista isso” pode continuar com “Esse garoto se vingou de quem o isolava na escola” e terminar com “Mostre o que acontece com quando te deixam de lado”.

Infelizmente, a mesma radicalização acontece nas redes sociais. Talvez você conheça mais o Facebook e o Instagram. Mas uma boa parte do que existe de pior na internet acontece no Twitter, no Reddit e no Discord, que poucos pais de adolescentes conhecem bem.

Em todas essas redes, os comentários mais “curtidos” sobem, e os posts com mais reações ganham mais destaque. No entanto, quando não existe um controle cuidadoso, os posts com mais reações são frequentemente agressivos, violentos, preconceituosos e ameaçadores. Milhares de pessoas já tiveram suas vidas transformadas por acusações ou perseguições virtuais e, embora em vários casos as exposições sejam importantes (como em casos de corrupção governamental e abusos sexuais, por exemplo), em muitas outras situações, as redes foram usadas para uma forma rude de “vingança”.

É frequente, por exemplo, que meninas que não desejem “ficar” com meninos tenham suas vidas expostas online, com prints de seus celulares, montagens pornográficas de seus rostos em outros corpos, fofocas mentirosas, e que se divulguem seus nomes completos, documentos e endereços. As redes sociais podem ser usadas para o terror.

Socialização virtual:

Um outro espaço novo na vida de nossos adolescentes é o jogo online. O video-game existe há várias décadas, mas a jogabilidade online com chats é uma novidade. A novidade especial aqui é que ninguém presta atenção de verdade em quem está do outro lado durante um jogo. Ninguém tem nome, nem endereço. São avatares, personagens. E é mais fácil aliciar e convencer quando há uma convivência de longo prazo, em um ambiente de confiança – como pode acontecer, por exemplo, com um adulto que jogue video-game com o adolescente ao longo de anos.

Os estudos que analisam a influência de jogos sobre o comportamento humano apontam para duas direções. Alguns afirmam que jogos violentos podem aumentar a violência dos jogadores na vida real. Muitos outros demonstram que isso não acontece, e que em casos em que alguém joga um jogo violento e é violento na vida real, essa violência já existia antes do jogo, ou há situações na vida do sujeito (negligência ou abuso parental, ou outras questões) que predispõem à violência, e portanto o jogo não é o fator determinante aqui. No entanto, uma vez que dentro do jogo nós temos diálogos com pessoas reais e que incentivam violência, as coisas mudam. Jogos talvez não influenciem comportamentos, mas outras pessoas influenciam, especialmente durante a adolescência.

Um terceiro ponto, que eu ainda não vi em nenhum lugar, mas que gostaria de trazer aqui, é a facilidade de comunicação entre diferentes línguas. Pouco tempo atrás, não era possível aproveitar conteúdo em língua estrangeira se você não tivesse o domínio da língua. Hoje, a tradução é automática e de alta qualidade no YouTube, nas redes sociais e em quase todos os jogos. Coincidentemente, o país que dá origem a quase toda a tecnologia do mundo, e onde ficam muitos dos maiores gamers, youtubers e influencers, os Estados Unidos, também é o país onde ocorrem mais ataques armados contra escolas no planeta Terra.

Armas de fogo:

De 2019 a 2022 o número de brasileiros com armas de fogo setuplicou. Você não vê essa palavra com frequência. É raro alguma coisa aumentar sete vezes em quatro anos. Famílias por todo o país passaram a ensinar às crianças que armas de fogo são importantes, interessantes, e boas. Aqui e ali, crianças pequenas passaram a ter aulas de tiro. Os números seguiram a mesma tendência: Até 2018, o Brasil tinha uma média de 0,4 ataque com arma de fogo contra escolas a cada ano – precisávamos de quase três anos para ter um. Em 2019 foram dois, em 2022 foram três. Os ataques também setuplicaram, e isso não é coincidência. Nós ainda não sabemos quantos ataques com armas de fogo contra escolas nós teremos em 2023.

Nós armamos uma fogueira com todo o estímulo virtual à radicalização e à violência. E então, derramamos combustível e acendemos as chamas, com a liberação de armas de fogo. Agora, estamos tentando melhorar as coisas colocando algumas pedras ao redor do incêndio, com detectores de metal na porta das escolas e guardas cada vez mais armados ao redor de crianças de dois, três anos de idade. O que sabemos até agora indica, inclusive, que colocar guarda armada nas escolas aumenta o número de mortes nessas escolas. Onde, honestamente, nós estamos com a cabeça?

Os adultos desta geração criaram um inferno para crianças e adolescentes. Os abusos já existiam, a violência contra crianças, o abuso moral e físico, o bullying entre crianças e o intergeracional. Mas o grau de isolamento desta geração de crianças é uma novidade.

Agora, estamos honestamente surpresos porque, depois de uma temporada no inferno, um pequeno número de adolescentes está retornando, cheio de mágoa, raiva, tristeza, e despejando isso sobre o resto de nós.

Alguns caminhos:

Nós precisamos entrar no inferno para resgatar aqueles que abandonamos lá dentro. Isso não é missão isolada de cada família. É missão coletiva. É missão de família, escola, sociedade civil, empresas e Estado. O que segue são sugestões muito iniciais do que podemos fazer, e eu peço que nos comentários deste post você traga o que mais puder de sugestões honestas e tão embasadas quanto possível.

Estado: o Estado tem o dever de vigiar as redes sociais. Ao menor sinal de ameaça, há de se agir. Parâmetros precisam ser postos no lugar para garantir que isso ocorra para proteção da sociedade civil, mais do que do próprio Estado, mas ainda assim é preciso regular aquilo que se pode e não se pode fazer: uma ameaça de assassinato é crime fora da internet, e precisa ser crime dentro da internet também. Se é feita publicamente, precisa ser percebida e combatida. O mesmo vale para assédios e outros crimes da expressão. A liberdade de expressão é fundamental, mas não pode matar pessoas.

Empresas: todas as empresas que têm produtos na internet têm a responsabilidade sobre o uso desses produtos. Antigamente, as empresas de jogos lucravam quando vendiam os jogos, e só. Hoje, lucram com assinaturas. A contrapartida deste pagamento constante precisa ser um cuidado constante com o ambiente virtual que elas geram. O mesmo vale para redes sociais – se lucram com nosso uso, têm responsabilidade sobre nosso bem-estar.

Sociedade Civil: é preciso que a gente fale, escute, converse, se reuna, e aja coletivamente. A ação isolada de uma família não resolve. Há famílias que não têm como ter este cuidado (por exemplo, de mães solo que trabalham até 14 horas por dia). Nós, que vivemos às custas do trabalho uns dos outros, temos o dever de cuidar uns dos outros, e não podemos ter preguiça social. Nem tudo se pode resolver em casa.

Escolas e Famílias: Abaixo vão sugestões bastante específicas para o assunto em questão, mas antes delas, nós precisamos abraçar uma verdade mais fundamental. Nada vem antes de como uma criança se sente. As relações desta criança e deste adolescente com colegas e com adultos são a parte mais importante de qualquer educação. O que vai definir o olhar deste sujeito para a vida e o que vai direcionar seus esforços futuros é a forma como ele se sente com outras pessoas, nos lugares mais importantes da vida dele: a casa e a escola. Isto posto, seguem sugestões específicas.

Escolas: quem trabalha nas escolas precisa aprender de verdade que a internet existe e que as crianças e adolescentes estão em franco sofrimento. Não é mais possível achar que as redes e os jogos acontecem “lá fora” e que “aqui dentro” nós podemos nos preocupar só com o conteúdo das disciplinas, por melhor que ele seja. A escola acredita que os alunos vão lá para aprender. Mas do ponto de vista dos alunos, eles vão à escola para viver, conviver e existir. A escola não pode se reservar nenhum recorte, ela é corresponsável pela vida e educação integral de cada criança ali presente. Inclusive por sua saúde física e mental.

Famílias: Se nossos filhos trouxessem adultos desconhecidos para nossas casas, não poderiam passar oito horas fechados com eles no quarto, sem que nós pudéssemos ouvir ou ver o que está acontecendo. Se isso não pode acontecer no ambiente físico, também não pode acontecer no ambiente virtual. A explicação para a criança precisa ser a mais gentil possível, mas precisa ser honesta: fazemos isso porque as empresas de tecnologia criaram um mundo paralelo. Se só existisse o mundo real, nós saberíamos o que acontece, como agora existem dois mundos, o adulto precisa participar dos dois: históricos de navegação e conversa, bloqueadores de conteúdo e, sobretudo, muito diálogo com as crianças e os adolescentes. Invadir não resolve, eles sabem esconder qualquer coisa que desejem esconder. É preciso ter diálogo para que eles entendam: da mesma forma que nós dividimos uma casa física, dividimos uma casa virtual, e precisamos cuidar do que acontece nas duas.

Nenhuma das sugestões acima vai resolver o problema (e nenhuma delas nasceu em mim, estão espalhadas por aí). O problema tem uma chance de ser resolvido se todas elas forem aplicadas. No entanto, para termos certeza de que as coisas mudaram, nada disso é suficiente. Nós precisamos de uma educação que não leve crianças e adolescentes a tanto sofrimento. A forma como organizamos a relação entre adultos e crianças hoje é cruel, e a escola é uma das ferramentas desta crueldade. Não precisa ser assim, e se você acredita que uma outra educação é possível, eu te convido a ler os outros textos deste blog. Pode ser que a gente tenha o que conversar. Quem sabe, a gente até contribui para uma solução duradoura.


Como bases para este texto, utilizei:

  1. O Corpo Guarda as Marcas, de Van der Kolk
  2. Mente da Criança, de Maria Montessori
  3. Segredo da Infância, de Maria Montessori
  4. A Educação e a Paz, de Maria Montessori
  5. Filme: The Great Hack
  6. Filme: A Rede Social
  7. A Máquina do Caos, de Max Fisher
  8. Palestra TED: https://www.youtube.com/watch?v=89XeX4eeulw
  9. Palestra TEDx: https://www.youtube.com/watch?v=Qc8ULMaTqYI
  10. Artigo: https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2776515
  11. Podcast: https://open.spotify.com/episode/3GYpmNKT63GXyUQEyVWIjz?si=6EDlaOCzTO6lr9_Tebg6EA
  12. Divulgação: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-12/brasil-registra-diariamente-233-agressoes-criancas-e-adolescentes
  13. Inventing Ourselves, de Sarah-Jayne Blakemore
  14. O Cérebro Adolescente, de Frances E. Jensen
  15. Reportagem: https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2022/11/25/brasil-registrou-12-ataques-em-escolas-nos-ultimos-20-anos-aponta-levantamento.ghtml
  16. Reportagem: https://www.metropoles.com/distrito-federal/na-mira/hunter-mirim-curso-de-tiro-para-criancas-em-go-causa-polemica
Outros

9 comentários

    1. Olá, boa tarde. Sou uma admiradora do Método Montessori. Infelizmente, não é possível ser fiel a discussão em pauta sem tocar na influência da extrema direita no Brasil nos últimos anos. Sua presença sempre foi notada, mas seu avanço deixou marcas tristes no país que perdurarão se não for tratada com a veracidade e clareza que necessita. Vimos isso acontecer em outros países e em outras épocas e os jovens são peça importante de sua movimentação. Precisamos ficar atentos e agir com clareza.

  1. Otima reflexão. Dias difíceis, tristes e muito preocupantes. Mas a sua reflexão ajuda a colocar no lugar coisas que podem ser feitas, obrigada.

  2. Não escapa nada do olhar da criança! E ela devolve tudo à maneira dela. É preciso a observação genuína que Maria Montessori fala com tanta propriedade. Uma simples roda de conversa (circle time) com elas traz resultados extraordinários.
    E sobre jogos, armas, EUA e internet é bem isso mesmo!
    Há muito para ser aprendido! Precisamos nos unir.

  3. Precisamos que tenha palestras nas Escolas de comportamento, bem como de Amorexigente! Já que a Escola “Educa e Ensina “

  4. Dulcissimo Gabriel, obrigada por colocar a questão em perspectiva para que possamos observar a nós mesmos nesse cenário. Chorei muito, e precisamos admitir a violência de nossa sociedade o quanto antes, tal qual uma doença cujo sintoma é expresso para que possamos finalmente expurgar tudo isso e instaurar uma sociedade em que as infâncias sejam de fato respeitadas e protegidas. Embora esteja bem claro durante o texto, acrescentaria não só a discussão em relação aos jogos terem a ver com as relações, mas o papel do entretenimento cada vez mais violento, “gore”, completamente desnecessário, a ver com a espetacularização, dos filmes e séries. Outra questão é o papel da pedagogia, da psicopedagogia e psicologia na melhora da socialização em geral, para criancas e para responsáveis, diria para absolutamente todos que exercem papel em instituições. Além disso, como Montessori afirma na educação pela paz, é necessário a conexão saudavel com a natureza, entendendo a harmonia humana nisso. A natureza humana e a harmonia do meio ambiente estão intrinsicamente ligadas. É necessário salvar a nossa natureza, diariamente, em cada atitude, em cada infância.

  5. Gabriel, eu agradeço por cada palavra do texto tão empático e ao mesmo tempo honesto. Vou compartilhar o quanto eu puder.

  6. Um artigo muito bem escrito e embasado. Uma reflexão necessária para os dias atuais. Obrigada, Gabriel!

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