Períodos Sensíveis V – Música e Ritmo

Depois do silêncio, a música é o mais próximo que chegamos de expressar o que não pode ser expresso. (Aldous Huxley)

De todas as expressões culturais, somente duas são constantes. Uma é a linguagem. Todos se comunicam, de alguma maneira, e todo povo desenvolve um sistema mais ou menos regular para dar suporte a essa comunicação, verbal ou iconograficamente. A outra constante cultural, em todos os povos e em todos os tempos, é a música. Isso nos permite a construção de uma raciocínio que é, no mínimo, poético e, no máximo, quase místico de tão belo.

A linguagem, como apontado por estudiosos tais quais Noam Chomsky, do MIT, é algo inerente ao humano. Uma característica que faz parte da própria formação cerebral humana e que se desenvolve em meio à cultura porque tem, biologicamente, apoio natural para seu desabrochar. Por isso, não é necessário ensinar uma criança a falar – ela o aprende naturalmente, desde que imersa em um ambiente no qual a fala humana (e não eletrônica, não televisiva, não informática) exista abundantemente.

A música segue o mesmo caminho. Existindo em todas as culturas e, desde que se sabe, em todos os tempos, se trata de um dos grandes pilares da humanidade e, portanto, uma das bases para a construção do humano individual, na criança. É muito relevante notar: o mesmo aprendizado independente que encontramos na fala e no caminhar, no pegar e nas expressões faciais, a mesma autonomia que aparece nas mais diversas áreas do desenvolvimento infantil se encontra no aprendizado da música. A criança aprende a cantar sozinha, ela aprende a batucar sozinha, e ela aprende a ouvir música sozinha – e gosta.

Claro, da mesma forma que algumas crianças aprendem a falar e se tornam oradores públicos ou escritores renomados, enquanto outras se tornam adultos introspectivos e ensimesmados, algumas crianças aprendem a cantar e se tornam amantes de música ou instrumentistas de excelência, enquanto outras serão adultos que apenas apreciam uma canção ou cantam quando sozinhos. O aprendizado autônomo e independente, natural e agradável, porém, permanece o mesmo para a linguagem e para a música. Esta que, aliás, é uma linguagem também. Montessori, de outro ângulo, via a linguagem como música:

O ouvido não acolhe todos os sons do universo, visto que
não tem suficientes cordas, mas nessas cordas pode
ressoar uma música complexa e toda a linguagem pode ser
transmitida com as suas delicadas e requintadas
complicações.  – Maria Montessori

Desde meados do desenvolvimento fetal, a criança se beneficia da exposição à música. A diretora do Conservatório Musical Mozart e professora no Centro de Educação Montessori de São Paulo, Olga Molina, adverte, porém: é muito importante que estejamos sempre atentos aos sons a que expomos as crianças. Vários de nossos sentidos podem ser desligados. Basta fechar os olhos para não ver, tapar o nariz para não sentir cheiros. Mas não é possível deixar de ouvir. Por mais que utilizemos protetores auriculares, ou nossos próprios dedos, algum som sempre ultrapassa essas barreiras, e chega ao ouvido – e chega ao cérebro.

Por isso, aquilo que oferecemos às nossas crianças para audição deve ser cuidadosamente selecionado. Sabemos que até os seis anos a criança está num período de formação cerebral que não se repetirá por toda a vida. A intensidade da formação de estruturas cerebrais nessa fase é única e maior do que tudo o que vem depois. Chamamos esse período de Mente Absorvente e sabemos que o desenvolvimento que se dá nessa fase é fundamental para toda a construção da personalidade posteriormente.

A música é benéfica para a criança e, nesse caso, em especial a música clássica, segundo diversos estudos. A habilidade de perceber a melodia de uma canção, seus instrumentos, e decorar estruturas musicais ouvidas repetidamente é algo que dá um imenso prazer à criança e que ela extrapola para outras áreas de sua vida e, assim, se concentra melhor, decora mais facilmente, compreende estruturas e aprende com mais tranquilidade.

Além disso, reconhecemos os efeitos emocionais da música sobre nós. Há coleções e coleções de CDs para ajudar crianças a dormir. E de fato, muitas músicas ajudam. Mas há de se saber a que se expõe os ouvidos da criança: Wagner é má ideia na hora do sono, assim como Mozart – mas são excelentes para um momento de brincadeira mais agitado ou para acompanhar trechos de uma história narrada por você.

Já Bach é muito mais relaxante e tranquilizador. Algumas de suas canções servem para dormir, e outras são interessantes para ouvir ao longo do dia, bem baixinho, ao fundo, enquanto se trabalha pela casa e pela escola. Você vai notar que há músicas bem interessantes para áreas externas, de movimento mais livre, ou para atividades de controle motor menos específico, na cozinha, por exemplo. Outras são melhores para atividades que exigem níveis de concentração muito mais altos, e trabalham com precisão do movimentos dos dedos e raciocínio lógico-matemático. Algumas estações de Vivaldi podem também bastante agradáveis para dias ensolarados, em que a brisa entre pelas janelas da sala (de aula ou de estar).

Como em todas as outras situações em Montessori, não há receita. Você vai precisar observar sua criança, com cuidado, e ver a reação dela a cada música. É a partir do sorriso no rosto, o movimento do corpo, a batida do pé, o olhar, e, sempre, sempre, sempre, a concentração, que você vai decidir o que é bom e quando.

Outro aspecto interessante da música é sua utilização ritualística. A música é desde sempre associada a ritos de passagem, atos de magia, situações religiosas… E não por acaso. A música ressoa dentro de nós e ajuda a criar as memórias necessárias e o estado de espírito adequado às atividades. Hinos nacionais, canções guerra e de navegação, as canções das lavadeiras e as dos camponeses, todas são formas de gerar o sentimento de grupo, o vínculo humano, o apego social necessário para a vida.

Por isso, usar músicas – vale dizer, sempre iguais – para o banho, para a hora de acordar, a hora de dormir e até mesmo o chamado para o almoço e a hora de ir para a escola pode ser muito eficiente na criação de uma rotina saudável, amena, tranquila e feliz para a criança. A música avisa de forma tranquila e com antecedência razoável que algo vai acontecer. Em vez de “Vamos dormir, filho, vamos”, uma canção pode dar tempo à criança para terminar o que está fazendo e ir, devagar e tranquilamente.

Evite, porém, programas de televisão, aplicativos e DVDs musicais. Via de regra, a qualidade musical desses artifícios é a última, na escala que você quiser, e não contribui em nada para a formação de uma percepção musical apurada e uma mente capaz de apreciar e, quem sabe até, produzir música.

A música, cuidadosamente escolhida, será sempre positiva ao ambiente e, portanto, ao seu filho ou aluno. Mas há maneiras de observar se sua criança tem uma afeição especial por essa manifestação humana, e verificar se este é o caminho artístico e comunicativo que mais fala ao seu coração.

A criança pode, por exemplo, falar pouco, muito pouco, ou mesmo nada, mas cantar tudo. Pode ser silenciosa ou estar ainda adquirindo a habilidade para falar, mas estar sempre sussurrando melodias, ou mesmo cantando-as em alto e bom som. Essa criança, via de regra, vai cantar enquanto trabalha, enquanto explora o ambiente, enquanto busca o que fazer, e vai apreciar quando você canta para ela ou quando pode escutar música.

Vale a pena sempre ter instrumentos disponíveis para a criança. Instrumentos reais, de qualidade. Ainda que poucos. Alguns instrumentos, mais artesanais, de linha indígena na maior parte das vezes, costumam ser em conta o suficiente. Disponha alguns, digamos, três, para a criança. E perceba a quais ela recorre com frequência e quais ela simplesmente abandona. Estes últimos você pode tirar de cena e, quem sabe, inserir de novo mais tarde, quando o controle motor dela permitir a utilização.

Se a paixão por um mesmo instrumento continuar, quem sabe seja hora de procurar um profissional que possa ensinar sua criança? Uma criança pode se apaixonar por um instrumento que nunca tocou e desejar aprendê-lo. Mas é muito mais fácil, havemos de convir, que uma paixão surja se ela puder conhecer a contraparte dessa relação amorosa. Em algumas cidades há orquestras que tocam especialmente para as crianças em alguns dias da semana, e há instrumentos musicais que cabem nas mãos delas e são fáceis e agradáveis de usar.

Em um texto futuro trabalharemos atividades que tenham a ver com o som, mas você pode começar trabalhando os mais diversos tipos de pareamento sonoro. Tubinhos de madeira ou PVC com as pontas lacradas de forma que a criança não possa abrir. Forme pares com conteúdos semelhantes e dê para a criança parear, como em um jogo da memória, por exemplo, só que usando os ouvidos em vez de usar os olhos. Você pode começar com três pares, talvez contendo areia, pedaços de madeira e pequenas pedras – antes de entregar à criança verifique se os pares têm sons bem distintos. Quando ensinar à criança como pegar nos tubos, segure-os com poucos dedos, para não abafar o som.

Atividades de musicalização com profissionais especializados em infância podem ser muito especiais também. Mas aproveitamos este parágrafo para um alerta, que se estenderá ao fim do texto. Insista para que a escola de seu filho não utilize televisão na sala de aula. A televisão é nociva para a infância e não há bem que ela produza que supere o mal que produz – especialmente entre zero e três anos de idade.

Ainda segundo a especialista Olga Molina, e concordando aqui muitíssimo com Maria Montessori, é necessário um silêncio sobre o qual surja o som. Em uma sala ou uma casa na qual não existe silêncio, na qual o som ou a televisão estão eternamente ligados, onde se fala sempre ao telefone e se conversa sempre alto, o som não tem lugar. Não há música clássica de fundo que dê conta da inquietude de uma casa barulhenta. O silêncio é a mãe do som. É dentro do silêncio que o som se desenvolve e é dele que o som sai, é a partir dele que o som vive e é nele que o som se apoia para existir no mundo. Sem silêncio, não existe som. Sem silêncio não existe música. E nos cabe mesmo perguntar, de forma uma tanto leiga e muito curiosa: O que é a música e o som senão diferentes manifestações daquilo que o silêncio não é?

Demoramos muito para escrever este texto. Era necessário muito mais estudo para que ele pudesse surgir. Ainda acreditamos que falta muito, e que é necessário escrever muito mais sobre o tema, tendo como base e ponto de partida sempre uma forma de enxergar a criança eminentemente montessoriana. Esperamos que o texto tenha atendido a expectativa que a espera gerou e prometemos em algum momento voltar ao tema. Em especial, deixamos um agradecimento à professora Olga Molina, que possibilitou os aprendizados mais ou menos suficientes para esta primeira inserção do Lar Montessori no mundo belo da música – que seja para você também uma possibilidade de início.

 

Arte e Música, Períodos Sensíveis

9 comentários

  1. Olá Gabriel, estou buscando músicas clássicas para compor a rotina da minha bebê de cinco meses… Queria indicações mais “específicas” de músicas, principalmente para o “ritual de relaxamento” após atividade diurna (massagem, banho frio, mama e soneca da tarde), noturna (banho morno, mama e sono final) e o momento de trabalho no chão com os materiais e espelho. Não conheço nada de música clássica (apesar de simpatizar muito) estou conhecendo e testando ainda, colocando a bebê para ouvir e ver a reação dela…O difícil é porque há uma variedade de músicas lindas e válidas dependendo da atividade. Comecei por.Bach para relaxar(Prelude Bach Cello Suite No.1, e Cantata 147 ao violão), Wagner(The Ride of the Valkyries) e Tchaikovsky (Swan Lake – Scene from Act 2) para o trabalho. Não tenho certeza de que são as melhores escolhas, e ainda falta experimentar tantos compositores!

  2. Ola, tudo bem? Vcs dizem que nao pode colocar pra crianca ouvir dvds musicais, mas e se for um cd de musica classica ou um canal de tv que so toque musica classica, sem imagens? Eh que eu nao sei tocar nenhum instrumento e aqui na minha cidade nao conheco quem o faça. Pode ser uma estacao de radio? Fiquei perdida rs

  3. Olá, Gabriel!

    Estou fazendo o curso online de Introdução a Montessori. Acabei de assitir à aula5 e fiquei muito curiosa sobre como acontecem as aulas de música segundo os princípios Montessorianos. Há materiais sonoros especialmente preparados? Há aulas de um mesmo instrumento musical para as turmas em escolas montessorianas?
    Pensei na aplicabilidade dos pontos da aula5 (auto educação, isolamento de dificuldades nos materiais, liberdade de escolha) em uma aula de musicalização e imaginei o uso de variados instrumentos, à disposição da turma, que os experimentaria da maneira e durante o tempo que quisesse, ou mesmo atividades relacionadas à apreciação musical, como bem aponta o texto acima. Porém, se a proposta da aula for a execução de uma atividade musical em conjunto ou o aprendizado de um instrumento musical específico, há uma maneira montessoriana ou procedimentos montessorianos utilizados para conduzir esta aula?

    Assim como o aprendizado da leitura/escrita é habituado àquela estrutura formal de ensino que a maioria dos alfabetizados conhece, o aprendizado musical e ensino da técnica instrumental geralmente seguem métodos e procedimentos “consagrados”, pautados no treinamento, no ouvir várias vezes, no executar e repetir juntos, etc. Foi segundo esta tradição que aprendi a fazer, executar e, consequentemente, a ensinar música. Mas estes conhecimentos sobre o método Montessori me têm feito pensar sobre como tratar este assunto de maneira mais natural e prazerosa para quem aprende.

    Como Montessori trata estes aspectos (auto educação, isolamento de dificuldades nos materiais, liberdade de escolha) relacionados à aprendizagem musical, especificamente? Há outras leituras sobre o assunto (mesmo em outros idiomas)?

    obs. Gostaria de fazer esta pergunta na página do curso, mas lá há um limite de caracteres, por isso aproveitei este espaço.

    Desde já, muito obrigada. Estou adorando o curso e esta página do Lar Montessori.

  4. Olá! Achei o texto bem interessante, mas gostaria de saber se tu tens textos relacionados as campainhas Montessorianas, obrigada!!!

  5. Olá! Meu filho mais velho demorou muito a falar (já tinha quase 4 anos quando começou a se comunicar com frases completas). Eu atribuí isso ao bilinguismo no ambiente doméstico, (português e espanhol) sendo que meu espanhol não era muito claro ou seguro, sinto que isso o prejudicou. Hoje ele tem 6 anos e domina bem os dois idiomas, tem um vocabulário bem rico.

    Quando está envolvido em uma tarefa, ele murmura uma melodia, que é trilha sonora de um filme do Myasaki. Essa música é o sinal mais claro de que ele está trabalhando, no sentido montessoriano.

    Sou muito grata à reverência com que Montessori trata os fenômenos invisíveis da infância.

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