“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso. […]”
Olavo Bilac
De vez em quando esquecemos de ser pacíficos. Infelizmente acontece. Vez por outra violentamos nossas crianças com aquilo que abrigamos de pior em nós. Imprevisivel- mente, o adulto deixa explodir pelos olhos, pelas bocas e, desesperadamente, pelas mãos, o que há de mais enterrado e evitado em si mesmo. Permite, sem controle, que rajadas de ira e orgulho fustiguem o corpo e as emoções infantis, varrendo a alegria e o amor que desabrochavam na criança e deixando um rastro de ruína e medo.
Esse rastro é visível, e se mostra no recuo do corpo, no arregalar dos olhos, no afrouxar da boca que (quase) se abre em choro, no vermelho do rosto e na respiração acelerada. A ruína e o medo são visíveis no espetáculo triste do horror infantil, que surge quando nós, adultos, deixamos de ver na criança – por um instante, alguns momentos ou, o pior, por toda uma vida – a luz que brilha e pode iluminar os caminhos da humanidade.
Montessori escreveu em A Criança que a psique humana é como um grande oceano, e que há nela momentos de tempestade. Essa bela metáfora pode ser estendida, e deve, se quisermos compreender com um pouco mais de clareza os esforços que devemos fazer para não permitir que as ondas, as chuvas e os ventos tempestuosos façam das águas potências de destruição para aquilo que vai além de nossa consciência, e atinja os seres que mais amamos no mundo.
A criança, de várias maneiras, é uma estrela. Cada criança é uma estrela. São elas que dão ao mundo brilho quando ele se vê mergulhado na escuridão. É a criança que consegue libertar das muralhas de seriedade adulta os sorrisos mais singelos, e que recupera na fortaleza da alma os resquícios da habilidade, às vezes há muito esquecida, de sentir amor. É a criança que pode desenhar para nós, como constelações em um céu de inverno, os traços da psicologia infantil e as bases da natureza humana. É ela que consegue nos mostrar, com a clareza de uma Via-Láctea em mar aberto, de onde nós viemos. É ela que nos oferece, como um Sol a raiar todos os dias, a certeza de uma segunda chance e a garantia da possibilidade de sucesso. A criança nos oferece, sem nada exigir em retorno, tudo o que tem. Ela se entrega toda amor, e mesmo quando não recebe amor de volta, insiste quanto pode, tenta quanto consegue. É difícil apagar o brilho de uma criança, ele resiste a muito. Infelizmente, ainda assim, adultos são especialmente competentes nessa ingrata tarefa.
Habitualmente, conseguimos enxergar o brilho infantil. Não é assim tão difícil. A maior parte de nós – e todos aqueles que têm a sorte de conviver com crianças – têm lembranças que nos fazem sorrir ou lacrimejar, felizes, ao lembrar de algum relance de humanidade provocado ou demonstrado por uma criança pequena – ou, para todos os efeitos, por uma criança grande ou um adolescente.
Entretanto, há momentos piores. Há momentos de movimentação tectônica dentro de nós, quando qualquer coisa que não deveria sair do lugar é deslocada por nossa recepção de um comportamento infantil, e nossos vulcões entram em erupção. Pense em uma criança que quebre algo de valor emocional imenso, ou em uma que desafie os adultos que a cercam com frequência, ou outra que constantemente machuque colegas de escola. Comportamentos assim – e em nossas mentes, crianças assim – movimentam algo dentro de nós que, perceptivelmente, não é bom. Percebemos, se prestarmos atenção suficiente, subindo desde as maiores profundezas de nossa personalidade a ação que tomaremos em seguida. O grito, o castigo, a palmada (ah!). Sentimos isso como um calor que sobe e retorce o que encontra pelo caminho, ultrapassando as próprias fronteiras de nosso corpo em suor, vermelhidão e angústia.
Uma vez que tenhamos explodido, e você talvez já tenha visto a explosão de um vulcão, e talvez já tenha estado em uma tempestade densa, o que sobrevém não é a bonança. Depois de uma tempestade, como depois de uma guerra, não existe Paz. Existe um rastro de ruína e medo. E se confundirmos esse estado assustador com a Paz, corremos o risco sério de compreender a Paz como a ausência da guerra, e não como o equilíbrio belíssimo que possibilita o surgimento das mais sublimes manifestações de humanidade. Montessori disse:
A história humana nos mostra que, assim que o invasor consolida sua vitória, a paz significa, para os vencidos, a submissão forçada, a perda de tudo o que mais lhes importa e a impossibilidade de usufruir dos frutos de seu trabalho e de seus sucessos. […] Os vencidos são constrangidos a sacrifícios, como se, do único fato de terem sido vencidos, fossem os únicos culpados, como se merecessem uma punição.
Vemos com clareza agora a diferença abissal que existe entre a tranquilidade da paz e o drama silenciado do pós-guerra. A paz se parece com a noite estrelada, a noite silenciada do pós guerra tem um céu carregado de nuvens, trovões longínquos ocasionais e, no horizonte, uma silenciosa tempestade de raios. Na noite do pós-guerra nós não vemos as estrelas. Nós não nos encantamos mais. Nós não sabemos que direção tomar e nem para onde estamos indo. Quando o dia finalmente nasce, depois da noite de tempestades, o Sol espalha uma luz opaca, sem brilho, desce seus raios como um manto triste de luz sobre a Terra, e não oferece esperança.
Quando castigamos nossas crianças, quando as maltratamos de qualquer maneira, quando gritamos, quando as isolamos do convívio social e quando, embora cada vez mais raro, batemos em nossas crianças, contribuímos anonimamente para uma imensa tempestade que assola o mundo. Tornamo-nos nuvens carregadas de barulho, água fria e eletricidade, prontas a desabar sobre qualquer coisa. Quando nos deixamos, vulcões, entrar em erupção feroz diante dos olhos daqueles que, indubitavelmente ainda, mais amamos no mundo, projetamos nos céus imensas nuvens de poeira, gás e fogo, e derramamos sobre a terra línguas imensas de lava e vapor. Esse imenso conjunto de desequilíbrios, essas nuvens-ira, esses trovões-orgulho, essa lava-tirania e todo esse fogo-poder nos impedem, mais cedo do que esperávamos, de enxergar na criança a esperança, a promessa e o futuro. Impedem-nos de ver estrelas.
Há no mundo montessoriano uma senhora que é uma lanterna quando nos encontramos entre confusos trovões, chuva e noite. Seu nome é Donna Goertz e ela escreveu o livro “Children Who Are Not Yet Peaceful: Preventing Exclusion in the Early Elementary Classroom” (algo como Crianças que Ainda Não São Pacíficas: Prevenindo a Exclusão na Sala de Ensino Fundamental I, a ser traduzido para o português). Também é dela o texto que traduzimos aqui, chamado “Manual do Proprietário de Uma Criança Montessori”, que se você não leu precisa ler agora (é, agora. Você pode voltar aqui depois e terminar este texto). Donna Goertz escreveu:
A solução de problemas em conjunto pelo adulto e a criança leva ao empenho das energias inatas da criança e de seus instintos vitais de autopreservação, e forma uma parceria poderosa em benefício da criança. A punição estrutura uma relação de adversidade entre adulto e criança, dentro da qual as motivações urgentes e implacáveis dos interesses pessoais da criança são colocadas em conflito com a orientação legítima e essencial da criança pelo adulto.
Quando erguemos a estrutura da relação de adversidade entre adulto e criança, estamos nos cegando para o brilho da infância e impedindo terminantemente a comunicação entre nós, grandes, fortes e poderosos, e a criança, pequena, frágil e cheia de maravilhas. Nós precisamos, finalmente, ouvir estrelas.
Precisamos olhar para a criança e encontrar nela o que há de bom. Precisamos, ao perceber os tremores vindos de nossas profundezas, olhar com mais concentração, mais vontade, mais atenção ainda para a criança, e precisamos encontrar nela o que há de bom. Em seu livro, Donna também nos fala de um exercício que ela mesma coloca em prática com frequência. Todas as vezes que uma criança recorrentemente causa problemas na sala, ou que um adulto responsável tem dificuldade de lidar com ela, deve sentar-se para observá-la e anotar coisas boas sobre ela e coisas que ela sabe fazer bem. Pois é por meio dessas coisas positivas e habilidades desenvolvidas que encontramos a chave para ajudar uma criança a sair de um esconderijo onde tenha entrado, por qualquer motivo.
Uma criança não se esconde só por efeito de nossas tempestades. Elas podem se esconder como reação a alguma mudança inevitável, ou como forma de não lidar com algum desafio difícil demais. De dentro de seu esconderijo, então, com pouquíssimo brilho, começam a causar no mundo problemas que nos levam a reagir com toda a imensidão de que só um adulto é capaz. De dentro de um local extremamente turbulento, escuro, isolado e misterioso, a criança pode agir de forma incompreensível e provocar verdadeiros desabamentos sobre si mesma, enterrando-se assim cada vez mais e mais fundo.
Aqui, nesse ponto difícil e delicado, temos dois papéis. Ambos desafiadores, ambos delicados. O primeiro é uma reforma interior intensa e profunda para ser capaz de ouvir estrelas, e perceber a presença da criança lá no fundo de seu esconderijo, e perceber a presença brilhante dela, embora o brilho não seja visível. O segundo é resgatá-la, por meio daquilo que ela tem de bom e sabe fazer bem, e trazê-la de volta à superfície, de volta ao firmamento, ajudá-la a redescobrir seu lugar entre as inúmeras constelações e guia-la, sendo ao mesmo tempo guiado por ela, à Paz que nos inunda verdadeiramente, na ausência de qualquer tempestade.
É possível evitar a ruína e o medo, e nós precisamos fazer todo o possível para isso – pelo ambiente da criança, pelo nosso comportamento, por um nível muito alto de compreensão e um amor muito profundo. Mas tanto quanto isso, é possível resgatar uma criança de uma realidade de ruína e medo, se nós pudermos reconhecer o que causou isso – e mais ainda se formos nós os causadores – e estivermos, como aponta com destreza Donna Goertz, dispostos a superar a alienação e os atritos por meio de esperança e amor inabaláveis.
Se pudermos fazer isso, todos os nossos esforços serão válidos. Cada pequeníssima conquista nossa significará o mundo para nossas crianças. Falharemos, e retomaremos a tarefa, e cada um de nossos acertos será valorizado da mesma maneira que nossas falhas serão, na infinita tolerância infantil, repetidamente perdoadas. Vale a pena. Não perdemos o senso, e em dias nos quais a comunicação é ao mesmo tempo tanta e tão pouca, nunca foi tão necessário treinar os ouvidos para ouvir estrelas.
Gabriel um dos teus textos mais belos!!! Conseguiste me tocar e me fazer refletir!!! Obrigada, mais uma vez!!!
Abraços cheio de Paz!!!
Texto fantástico, emocionante, para ler e reler inúmeras vezes.
Muito bonito o texto… estou me vigiando ao máximo para entender o que se passa na cabeça do meu filho e agir de forma consciente e amorosa com ele, mesmo nos momentos em que não estou muito paciente. Vou compartilhas com algumas pessoas pois quero que mais crianças sejam compreendidas e criadas de forma melhor. Obrigada por divulgar estes textos que ajudam a aumentar nossa empatia com as crianças e até com outros adultos.
Simplesmente lindo! Impossível conter as lágrimas enquanto lia esse texto.