Certa vez, durante um de seus cursos, Montessori passou por uma situação que, depois, se tornou anedótica em suas obras. Uma senhora, mãe de crianças e aluna de Montessori no curso, veio até a educadora no intervalo e lhe perguntou, sem nenhuma malícia: “Senhora Montessori, quanto à liberdade, gostaria de lhe fazer uma pergunta. Quando meu filho sobe no sofá de sapatos sujos, o que eu devo fazer? Devo deixá-lo lá? ”. E Montessori respondeu, com tom imperativo: “Tire-o de lá imediatamente! ”.
Montessori enfrentava sérios problemas quando o assunto era liberdade. Em suas primeiras escolas, depois de repetir infinitas vezes para as educadoras das salas de aula que deveriam permitir a livre ação das crianças, e que elas eram livres para trabalhar, precisou enfrentar a decisão das professoras revoltadas, que simplesmente não interferiam mais, em absoluto, e deixavam que a sala se transformasse em um pandemônio, se fosse o caso. Perceber o ponto exato que se deve buscar para a liberdade da criança que se desenvolve não é fácil – é, na verdade, um dos maiores desafios de qualquer adulto preparado.
Montessori disse que a primeira distinção que a criança deve fazer é entre aquilo que é bom e o que é ruim. E é tarefa do adulto garantir que ela não confunda bondade com imobilidade e maldade com movimento. Nosso papel, portanto, no que diz respeito à disciplina e a qualquer tipo de interferência, é somente ajudar a criança nessa distinção. Nada mais. Este texto será dividido em três partes, para que possamos analisar três pontos de vista sobre a liberdade.
Os Erros e Suas Correções
Há dois tipos de erro na criança, e assim, trabalhamos com eles de maneiras distintas. O primeiro tipo de erro é aquele que se dá quando uma criança tenta fazer algo e não consegue. Digamos, quando tenta servir-se de suco e derruba o suco na mesa. A criança, nesse caso, percebe seu erro, ele é evidente, mostra-se com mais autoridade do que teríamos nós ao dizer para a criança “Você derramou seu suco! (de novo!)”. O suco derramado tem mais autoridade do que nós porque ele é um fato, ele é o mundo, e nós somos somente narradores ou comentaristas desagradáveis.
Quando a criança comete um erro desse tipo, nós não a corrigimos. Nós sequer tecemos qualquer comentário sobre o erro em si. Não dizemos que ela não presta atenção, nem dizemos que ela não pode mais se servir. Não a lembramos, nessa hora, de que deveria ter segurado a jarra com as duas mãos e sequer elevamos o volume da voz para dizer que ela deve secar a mesa. Simplesmente estendemos a ela um pano ou pedaço de papel-toalha para que ela seque o que molhou, ou lhe ensinamos a secar, bem lentamente, o suco derramado.
Dizer um “Eu falei!” ou “Você derrubou o suco!” não são correções. São declarações de fatos, como bem coloca Montessori em seu 1913 Rome Lectures. E nós não precisamos falar em voz alta o que o mundo fala sozinho – é redundante e é desagradável. Para a criança aprender, às vezes é necessário ensinar. E a gente ensina ensinando e não corrigindo (créditos aqui: aprendi isso com Marion e Paige, as diretoras do Centro de Educação Montessori de São Paulo).
O outro tipo de erro, o que precisa de nossa interferência, é aquele em que a criança faz mal a si mesma, a outro ser vivo ou ao ambiente. Nesses casos, precisamos interferir imediatamente e encerrar a ação da criança, buscando, é claro, fazê-lo sem brutalidade. Digamos, por exemplo, que uma criança suba em um batente de janela. Devemos retirá-la de lá imediatamente, ainda que ela não deseje sair e o demonstre muito clara e emocionalmente. Por outro lado, se uma criança está bagunçando um espaço da casa que deveria permanecer organizado, não precisamos ser tão imediatos. Podemos interromper a ação, com firmeza e objetividade, mas não precisamos intervir fisicamente. A ação verbal e a ação sobre o ambiente devem bastar, sem ser necessário agir sobre a criança. Para casos em que uma criança está agredindo outra, se reproduz o que fazemos em situações de risco, adicionando-se aqui técnicas de mediação de conflito que consistem, basicamente, em conversar com as duas crianças ao mesmo tempo, sem repreender nenhuma delas, e ouvir as versões de história que têm para contar, chegando a um consenso para a forma de agir no futuro.
Condições Favoráveis à Vida
“Quando dizemos”, falou Montessori em 1913, “que desejamos colocar a criança em tais condições de liberdade que suas forças criativas interiores estejam livres para se desenvolver, dizemos tudo”. Montessori preferia usar a expressão “condições favoráveis à vida” do que “liberdade”, não porque exprimissem algo diferente, mas porque a expressão transmitia com mais clareza ao grande público qual a ideia montessoriana de liberdade.
Uma criança colocada em um ambiente que lhe oferece condições favoráveis à vida pode, quase sempre, ser deixada em liberdade irrestrita. É raríssimo que precisemos intervir quando uma criança está em um local com natureza abundante, objetos interessantes de se manusear, espaço para movimento amplo e adultos que sabem orientá-la e compreendê-la. Quase sempre qualquer criança se comporta da forma mais ideal possível em ambientes assim, e não é de surpreender. Além do efeito restaurador e calmante que a natureza de fato apresenta (http://www.nytimes.com/2010/11/30/health/30brody.html), um espaço preparado dessa maneira, e seres humanos compreensivos por perto são garantia de bem estar. Quando nos sentimos bem, então, comportamo-nos muito melhor – mesmo entre adultos, havemos de convir.
Entre as condições favoráveis à vida está a não-interferência do adulto, para que a criança possa levar seu desenvolvimento a diante em seu ritmo natural e do seu jeito. Em um caso recente eu estive em uma sala de aulas em Santo André, SP, onde uma menina ia iniciar um trabalho de transferência de líquidos com uma jarra, uma garrafa e um funil. Pegou a jarra e ia transferir a água direto para a garrafa, e eu quase interferi. Hesitei, ainda bem. Foi o tempo de a menina deixar cair parte da água e decidir pegar o funil para continuar a atividade. Depois, terminando, enxugou o necessário na bandeja. Posteriormente, ainda observando a garotinha de três anos, vi que dominara a transferência sem funil, mas só para o finzinho do líquido, pois que o fluxo diminui consideravelmente no final – ela, então, usava o funil quando necessário e o abandonava quando possível. Quanto eu teria atrapalhado se tivesse interferido todas as vezes em que o funil fora deixado de lado… teria sufocado condições favoráveis à vida. Teria impedido a liberdade, e mais do que isso, teria impedido a criança de se concentrar profundamente, aprender muito e alegrar-se com o exercício.
Disciplina e Harmonia
O mundo funciona segundo leis fixas e totais. Gravidade, inércia, seleção natural e muitas outras leis regem o funcionamento do planeta e, em alguns casos, do universo mesmo. O ser humano, para Montessori, não escapa a essas leis. Para nós, para nosso desenvolvimento e nosso desabrochar interior também há leis fixas e, até certo ponto, imutáveis. Nascemos, e nosso corpo desde bem antes do parto já vinha se formando conforme as leis inscritas em nossos cromossomos. De nada adianta tentar apressar o desenvolvimento. Ele vai acontecer em seu ritmo, e será mais saudável quanto mais esse ritmo for respeitado. Podemos atrasar o desenvolvimento da criança, criando obstáculos ou facilitando demais seu trabalho. E isso é ruim. Mas não podemos apressar nada.
Da mesma maneira que o desenvolvimento físico acontece segundo uma autoridade interior, o desenvolvimento psíquico se dará de forma natural. Obedecendo leis universais. Por esse ponto de vista, é válido dizer: a máxima liberdade é atingida quando a total obediência é alcançada. Obediência essa que se dá a todas as leis que ajudam no desenvolvimento infantil.
Montessori percebeu, e nós, educadores montessorianos, percebemos há cem anos, que toda criança que se desenvolve em um ambiente adequado à sua vida apresenta uma obediência fora do comum. E fora do comum por dois motivos. Primeiro, porque é uma obediência total e imediata: a criança em um contexto preparado para ela obedece naturalmente ao adulto que está presente nele. Segundo, porque é seletiva: a criança não obedece todo adulto só porque ele é “mais velho”. Obedece alguns adultos porque os admira e tem absoluta certeza de que todas as ordens que recebe deles visam seu melhor desenvolvimento e seu maior bem estar.
É nesse sentido que podemos dizer que a liberdade só é real quando há absoluta harmonia entre a força de vontade da criança, as suas necessidades interiores, o ambiente preparado exterior e o adulto preparado que a acompanha. Quando esta harmonia é alcançada, ocorre como em uma orquestra: de repente, percebemos que está tudo certo, que tudo cai em seu lugar, que tudo se ajusta. A criança percebe também – com alegria.
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Gabriel, mais um lindo e instrutivo texto… obrigada por partilhar conosco seus conhecimentos e reflexões…. tenho aprendido muito de Montessori com vc… abraços!
Que maravilha! Liberdade com responsabilidade!
Muito bom! Essa é uma angústia que vivemos diariamente, até onde deixar e como lidar com a liberdade das crianças. Me enxerguei cometendo vários dos comportamentos acima sobre erros, mas ei de melhorar. Obrigado!
Gabriel, lindo texto!! Sou professora de Educacao Fisica e qro muito fazer a formacao montessori! Tenho um filho de 7 meses e estou em casa dedicando exclusivamente a ele ate uma certa idade que a principio sera 2 anos para entao depois voltar para o trabalho e coloca-lo em uma escola. Na sua visao que idade seria adequado deixar uma crianca numa escola? Desde ja agradeco! Erica
Gabriel, esse texto é um afago na alma materna! Obrigada!
Adorei o texto! Parabéns Gabriel!!!
Amo seus textos cheios de referências, fáceis de compreessão. Obrigada por me ajudar a me informar e me tornar uma educadora, professora e agora uma mãe melhor.
Que lindo, Gabriel! Ler seus textos me ajuda a ser uma mãe melhor. Você me inspira e me transforma!