O Trabalho de Montessori

Eu amo Montessori porque ela nos permite ser inteiros. Deve haver – eu aposto mesmo que há – outras escolas, outros métodos, outras visões de criança e outras formas de criação que também permitem. Mas se há, então não são outras, mas são a mesma, sob outras formas de funcionamento, sob outro sistema, sob outro programa, mas essencialmente a mesma. Porque não há muitas naturezas humanas, não há muitas essências humanas. Há uma. E porque há infinitas manifestações dessa essência, nós somos todos diferentes… E porque há uma essência só, há esperança de paz e compreensão para a humanidade.

Sob os olhos de um adulto preparado em Montessori, uma criança que canta enquanto caminha não é uma criança indisciplinada, nem é uma criança errada. Ela é uma criança que canta enquanto caminha (não é o compasso da música o que os pés dela marcam enquanto anda? Não é no ritmo da música que ela pula?). Aos olhos de Montessori, uma criança que empilha potes de cozinha não é uma criança que precisa aprender que há coisas nas quais ela não pode mexer. Não. Ela é uma criança que está aprendendo a encaixar coisas, e descobrindo que há coisas grandes e coisas pequenas. Muito mais: ela está descobrindo que há harmonia no mundo, e que as coisas, mesmo quando parecem um caos, tendem à ordem. Com cuidado, com meticulosidade e paciência, aos poucos, ela encontra a ordem, e encaixa, e empilha, e separa. Ela brinca, nós diríamos. Mas ela trabalha arduamente para colocar ordem no cosmos.

Há uma receita em Montessori, sim. E listas de ingredientes, e técnicas, e passo-a-passo, e tudo. Há cinco características de um ambiente preparado: controle de erro, isolamento de dificuldade, estética, possibilidade de atividade e limites de objetos. Há três características para os materiais montessorianos: controle de erro, isolamento de dificuldade e manipulação infantil. Há onze características para a criança equilibrada, seis princípios amplos que definem a pedagogia, vinte e cinco passos a seguir para se apresentar como se faz para desenrolar e enrolar um tapete, cinco áreas em que se deve separar a sala montessoriana, trinta e dois materiais mencionados no livro Pedagogia Científica, e sessenta e oito considerados essenciais por professores montessorianos atualmente. Há duas principais formas de desvios de desenvolvimento na criança e uma forma de cura para quase todas as feridas emocionais e psicológicas, há listas, e esquemas, e objetivos, e detalhes, e repetições, e uma exatidão milimétrica nesse método, que nos permitem, finalmente, respirar fundo, esquecer todas essas tabelas, sequências e ordenações, e admirar a vida, com uma emoção que transborda tudo, com uma admiração pela humanidade que suplanta qualquer coisa, com esperança e fé tão profundas que nomeá-las assim parece simplório demais e quase desonesto.

Mas sobretudo, sobre todas essas coisas, que se pode aprender nos livros ou nos cursos de formação profissional, há um cerne em Montessori: acredita-se na humanidade. A esperança que se tem na humanidade em Montessori, acho, é o que me fascina. Não se educa uma criança com liberdade verdadeira se não se acreditar que, no fundo, o ser humano pode muito. Só é possível confiar na criança quando, de uma vez por todas, confiamos no humano-em-si. Acreditar nela, com um copo de vidro na mão, é acreditar em nós, com tanta tecnologia, poder e conhecimento em mãos. Acreditar nela fazendo coisas que parecem difíceis demais para sua idade… é acreditar em nós tentando, palmo a palmo, salvar a vida e melhorar a Terra. Montessori acreditava na humanidade. Era sua crença implacável no humano que permitia a ela passar por uma, e outra, e outra guerra, ser expulsa de países, exilada, ameaçada, presa e simbolicamente queimada em sua própria pátria, e mesmo assim continuar a dizer: libertem a criança e vocês a transformarão no mundo.

Eu amo Montessori porque Montessori me permite crer na humanidade de uma forma que nada mais permitiu até hoje. As transformações, os milagres, as curas que eu vi em Montessori, eu não vi em nenhum outro lugar. Os adultos que eu vi se converterem em devotados da infância (e devotados da humanidade, por extensão) só se converteram assim em Montessori. Abandonaram tudo e seguiram a criança, para onde a criança foi. Deixaram para trás suas crenças mais fundamentais, seus valores mais fixos, seus hábitos mais profundos, e seguiram a criança. As crianças que eu vi se curarem, se transformarem e desabrocharem em Montessori só desabrocharam ali. Depois de recusadas, violentadas, abandonadas, elas encontraram em Montessori a chance de curar suas feridas e seus machucados da alma. Os mais doloridos.

Aquilo que em Montessori nós chamamos de trabalho é que é o nosso maior segredo. É isso que eu amo. No trabalho, livre, interessante, feito com as mãos, a criança palmilha seu caminho de desenvolvimento, encontra-se consigo, liberta-se. Pelo trabalho intenso em que emprega toda sua consciência e vontade ela se descobre, assim: ela tira de cima de si a cobertura densa e viscosa que se acomodou ali por meses ou anos de repressões adultas, ela se descobre, e quando se descobre se revela: inteira. Montessori nos permite, como crianças e como adultos, encontrar o melhor e o mais inteiro de nós. O mais puro e o mais profundo de nós. E é isso que vale o esforço, é isso que vale o empenho. É isso, meus amigos queridos, que vale o trabalho.

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