Maria Montessori dizia: “Nunca ajude uma criança em algo que ela acredita que pode fazer sozinha”. Mas neste texto eu quero falar de outra coisa. Quero falar sobre não ajudar a criança mesmo quando ela não acredita que pode fazer sozinha. É estranho e difícil, mas vamos juntos.
No mundo ideal, todas as crianças teriam lares montessorianos com famílias cheias de tempo e escolas montessorianas com professores muito bem formados. No mundo do nosso dia a dia, não é assim sempre. Se no mundo ideal, todas as crianças se desenvolveriam bem, com autoestima forte, independência ativa e poder sobre a próprias ações, no mundo do dia a dia quase todas elas vivem enclausuradas em mundos de fantasia, dependência e inércia por anos a fio – até que um dia algo muda em nós, e decidimos ajudar a independência a acontecer.
Nessa altura (na altura dos quatro, cinco, sete, nove anos), a criança já está mais do que acostumada a ser incapaz e incapacitada, nula e anulada, e ajudada o tempo todo. Ela já perdeu a confiança na própria força e na própria ação faz muito tempo. E é nesse cenário triste que entramos, querendo transferir a ela responsabilidades importantes que por tempo demais, percebemos, roubamos para nós. E aí é difícil, porque ela acredita, sinceramente, que não pode, não consegue e não deve se esforçar para poder e conseguir. Precisamos do triplo de paciência que precisaríamos se tivéssemos agido corretamente desde o começo, mas há trabalho a fazer e paciência a cultivar, e vamos em frente.
Dois Modos de Não Ajudar
Há, é claro, mais de uma maneira de não ajudar crianças. Uma é não dar importância ou estar impossibilitado de ser de ajuda a ela: é o caso de adultos que preferem deixar a criança fazer como quiser ou puder a serem eles a ter o tempo ocupado pelas necessidades infantis, e também o caso do adulto que adoraria estar com a criança, mas trabalha de sol a sol, e as crianças precisam ser independentes para sobreviverem.
Outra forma de não ajudar crianças, aquela que defendemos em Montessori, exige a presença total de um adulto que faz três coisas: prepara o ambiente e os objetos; demonstra ou apresenta a forma correta de fazer; e observa a ação da criança. Isso é necessário em qualquer situação de não ajuda.
Em uma situação boa, em que a criança seja ainda nova (até mais ou menos três anos) e esteja começando a conquistar sua independência física, basta a demonstração e a disponibilidade dos objetos necessários, e se não houver maiores empecilhos, a criança busca a ação independente. Nós vamos tratar do outro caso.
É comum que uma criança de cinco anos não acredite que é capaz de fazer qualquer coisa por si mesma, porque fizemos por ela, ou com ela, por muito mais tempo do que ela precisava que fizéssemos. Nesse caso, a experiência me mostrou que há alguns passos a seguir:
Primeiro, é necessário picar a ação em pedaços ainda menores. Se, por exemplo, o desafio é colocar uma camiseta, para uma criança que não acredita em si, colocar uma camiseta é muito. Então picamos. Ela precisa só colocar a cabeça, o resto nós fazemos com ela. No outro dia, a cabeça e o segundo braço, depois a cabeça e o primeiro, e depois a cabeça e os dois braços.
Aos poucos, ela conseguirá fazer tudo, mas é muito possível que ainda insista que não consegue, e não aceite nossas afirmações de que ela é capaz, sim. Nesses casos, novamente a experiência me ensinou alguns passos possíveis.
Podemos só insistir: “Consegue sim, coloca”. Ou podemos insistir nos passos: “Claro que consegue, vamos, a cabeça, isso, agora um braço… o outro… [sorriso]!”. Ainda podemos narrar: “Vamos lá, coloca a cabeça, isso, pelo buraco, agora vamos achar o buraco da manga. Esse. Um braço… agora vamos… isso, no outro, vai lá… pronto? Então tá bem”. Em todos esses casos, o que fazemos é uma coisa só: garantir que a criança não foi abandonada porque foi independente.
A criança que depende do adulto por tempo demais desenvolve em relação a ele um apego que nada tem daquele apego importante e saudável da relação entre pais e filhos. Trata-se de um apego feito todo de dependência e insegurança. A criança tem mesmo medo de, num momento qualquer, não poder mais contar com o adulto. E a forma de dar a ela a garantia de que isso não acontecerá mesmo que ela avance rumo à independência é transformar a ação física em ação narrativa. Ficamos por perto, participando da experiência com a voz. Até que, claro, não ficamos mais.
Há momentos em que condicionar uma ação futura à independência presente ajuda. Por exemplo, para ir a um parque, é necessário vestir as meias. A criança pode insistir que não sabe – mesmo sabendo – vestir as meias. E nós podemos explicar que para ir ao parque é necessário estar de meias, e que nós sabemos que ela é capaz e vamos ficar por perto, junto, até ela conseguir para a gente sair junto para o parque. Não se trata de uma ameaça ou uma chantagem. Ninguém vai deixar de ir ao parque. Ninguém disse que se ela não colocar a meia sozinha não vai ter parque. Não. Dissemos que meias são necessárias e ficaremos por perto até ela conseguir. Oferecemos a justificativa para o esforço e a presença para a segurança emocional.
Isso parece contrariar a teoria básica de Montessori porque contraria mesmo. Nesse caso, estamos consertando algo que não deu certo – estamos tratando de feridas. Os cuidados para com um enfermo não são os cuidados para com alguém que está bem de saúde, e a não-ajuda da criança excessivamente independente é diferente, pela mesma razão, da não-ajuda oferecida à criança que conquista sua independência com tranquilidade.
O que nós não podemos fazer é decidir que, porque é muito mais rápido vestir a criança, ela vai ter que aprender a ser independente mais tarde. Não podemos decidir que “o que é que tem ele querer minha ajuda? Ele gosta!”. E não podemos decidir que “Eu quero é aproveitar agora que ele quer minha ajuda, depois não vai me querer nem por perto e eu vou sentir saudades”.
Porque isso importa
Não ajudar a criança é uma maneira de confiar nela. É confiar é uma forma de amar. É a certeza desse amor, dessa confiança completa depositada nela, que vai oferecer uma base segura sobre a qual pisar até que ela se torne independente o suficiente para firmar uma autoestima saudável e sólida, que não dependa mais de nossa narrativa nem de nossa aprovação.
Evitando o julgamento, a imposição e a chantagem, tratamos a criança com o máximo de respeito e a independência como um fator natural da vida, não mais desagradável do que qualquer outro, nem mais urgente por qualquer motivo. E sendo um fator natural da vida, ela perde seus perigos e pode ser conquistada com certeza e força interior.
A construção da independência é a construção do eu e a formação do humano. Nosso papel de não-ajudantes é crucial, e tanto mais urgente quanto mais tarde é na vida de uma criança. Negligenciar a importância da independência é um erro que não devemos cometer, claro. Mas se por desconhecimento ou impossibilidade esse tempo já passou, há muito o que fazer, e nós podemos acreditar na criança – esse parece ser um importante passo para que ela acredite nela mesma.
Até mais!
Obrigado pelos textos, dicas e motivações!!! Um abraco,
Gabriel, obrigada por compartilhar esse texto consoco, ele é ótimo. Eu estou com dúvidas quanto a idade adequada dá criança pra agir assim, seria a partir de qual idade?
E você citou crianças de 3 a 5 anos de vestido, então se a não-ajuda for aplicada a partir dos 15 meses de uma criança, espera-se que aos 3 anos ela alcance a independência de vestir-se sozinha?
Desde já, agradeço pela atenção e, novamente, pelo texto.
Muito obrigada.
Andressa Andrade
A aquisição da independência é gradativa. No começo ajudamos muito, e depois vamos ajudando cada vez menos. A cada novo passo seguramente adquirido, podemos agir assim com aquele passo específico. Abraços!
Por trabalhar em uma escola Montessoriana, afirmo com segurança que esse é o papel do adulto, transmitir segurança para que a criança venha tornar-se independente com confiança!
Amei o texto.
Muito obrigada por compartilhar.
Muito esclarecedor e objetivo esse texto.
O conhecimento liberta de conceitos equivocados sobre amor, direitos e deveres.
Parabéns Gabriel, acompanho o Lar Montessori há algum tempo, os textos ajudam muito a muito aplicar Montessori na vida cotidiana. Estou procurando um artigo seu que não consegui localizar, que falava em como agir quando a criança tem tendencia a possuir e destruir (lembro que havia essa relação).
Você poderia me ajudar a encontrar?
Parabéns e muito obrigada
Eu mesmo não lembro. Mas pelo assunto, deve estar na categoria de textos sobre Disciplina. Abraços!
Cada dia me apaixono mais pelo método Montessoriano. É lindo a importância que ela da a criança tendo este como sujeito capaz de auto – educar-se… Seu trabalho é maravilhoso! Te admiro.
Gabriel, boa noite.
Fui à sua palestra em Goiânia e gostei muito. Foi emocionante. Acompanho o seu site e sempre tento colocar em prática os ensinamentos Montessorianos. Sua sensibilidade com as crianças é inspiradora.
Muito obrigada,
Elisa
Obrigado pelas palavras, Elisa, gentis e generosas. Abraços!
Bom dia Gabriel!
Primeiramente gostaria de parabenizá-lo e agradecê-lo pelo excelente trabalho q desempenha.
E preciso de uma orientação.
Tenho uma filha de 7 anos e um filho de quase 3, tenho estudado e tentado aplicar Montessori em casa desde q minha primogênita era pequena. Mas agora com 7 anos ela não está querendo fazer algumas coisas q já fazia antes( por exemplo tomar banho sozinha, cortar uma fatia de bolo e servir-se).
Noto q há uma grande curiosidade em aprender e conseguir fazer algo novo, mas depois de conquistada a independência parece q perde a “graça “. Ela continua buscando independência (agora quer fazer o bolo, mas não servir-se), mas tem se tornado dependente de novo em outras. Será q me fiz entender?
Não tenho encontrado muitos textos de Montessori para além de 6 anos. Pode me ajudar, por favor?
Muito agradecida.
Paula