Crianças Não São Garrafas: Como os Rótulos nos Enganam

Há pouco tempo lemos a terrível notícia de um profissional de saúde que, em lugar de um medicamento, injetou vaselina em um garoto, e o levou à morte. O erro do profissional? Não ler o rótulo. Rótulos indicam componentes, ingredientes, calorias, marcas, datas de fabricação e validade. Rótulos nos ajudam a viver em segurança. Rótulos nos protegem. Isso é importante quando são latas de leite condensado e garrafas de água sanitária. Isso é perigoso quando tratamos de crianças.

Quando vemos uma garrafa e ela tem um rótulo, temos a segurança de saber o que tem lá dentro, e como devemos nos comportar: devemos beber gelado? Devemos usar luvas ao manipular? Nós prevenimos acidentes.

Não preciso abrir a garrafa, explorar o conteúdo, interagir com ele, e descobrir na prática como ele se comporta, como funciona. Se o rótulo está lá, eu não preciso conhecer o produto. É suficiente conhecer as palavras do rótulo, e eu decido o que fazer com o produto em si.

O problema é que com as crianças é exatamente igual.

Quando colocamos rótulos nas crianças nós nos sentimos seguros, porque achamos que o rótulo indica, de verdade, o que tem lá dentro. Achamos que o rótulo vai nos dizer o que fazer, e como devemos nos comportar.

Cercando a criança, o rótulo também restringe a sua liberdade: a criança que recebeu o rótulo de desastrada não consegue ser nenhuma outra coisa. Todo mundo está de olho, esperando qualquer evidência que comprove o rótulo, que mostre, de novo, que ela é mesmo desastrada.

Claro, um diagnóstico é diferente de um rótulo. Um diagnóstico bem feito abre avenidas de ação. A criança se torna mais livre quando recebe um bom diagnóstico e passa por um bom acompanhamento terapêutico. O rótulo não faz nada disso. Ele só esconde a criança verdadeira, e faz com que a criança precise se adequar ao rótulo, e não ao contrário, como deveria ser.

Nós rotulamos quando, em vez de dizer que “Maria mordeu João”, dizemos que “Maria é agressiva”. Rotulamos quando chamamos José de “descontrolado” em vez de dizer que ele quebrou um copo e derrubou uma cadeira.

Quando uma criança recebe um rótulo, ele gruda. Ele vai se fundindo, aos poucos, com a própria criança, até virar parte dela. Por isso, Maria Montessori era radical:

Nunca fale mal da criança em sua presença ou ausência. (Maria Montessori, Decálogo Montessori, 1992)

Quando falamos mal da criança nós não resolvemos nenhum problema. Ninguém sai ganhando quando decidimos que Fernanda é desatenta. Todo mundo perde. Fernanda perde a chance de se tornar atenta, porque ninguém acredita nela. E nós perdemos a chance de ajudar Fernanda.

Assim como acontece com vários outros hábitos adultos, nós carregamos esse por gerações. Incontáveis gerações falaram mal de crianças, colocaram rótulos nelas, e se impediram de ver a criança pelo que ela é.

O rótulo nem sempre é uma mentira. Mas ele pode ser uma versão da história. Uma versão provisória, imprecisa, e por isso está tão longe da verdade quanto a mentira. Mas como tem alguma coisa a ver com a verdade (João derruba mesmo alguns copos, com frequência), nós não percebemos que o rótulo não é verdadeiro (é difícil entender que mesmo assim João não é desastrado), e continuamos usando.

Silvia Dubovoy, uma montessoriana incrível, diz:

Se eu venho com ideias sobre o que houve ontem para uma nova experiência, eu transmito para a criança meus sentimentos de ontem, e a criança vai reagir exatamente como eu espero que ela reaja.

Tenho de ter uma mente silenciosa. Uma mente silenciosa quer dizer que vou observar de forma tal que não trarei nenhuma experiência pregressa para essa experiência nova. Eu vou me libertar de todas as ideias preconcebidas sobre o que é uma criança, você é novo, e seus olhos são novos, e você aceita situações, seres humanos, as crianças, de uma forma totalmente diferente.

Precisamos aprender a fazer isso. Precisamos nos conscientizar dos rótulos que usamos, fazer um esforço para parar de usar, respirar e olhar a criança munidos de paciência e esperança, e então, abrir os olhos, em silêncio.

Se nós pudermos cultivar a mente livre de rótulos, que olha para a criança e vê a criança, e não o rótulo que foi colocado nela, então nós temos uma chance. Uma chance de ver a criança de verdade, de entender a criança de verdade, e de ajudar a criança de verdade. Nós, e elas, precisamos muito dessa chance.


Sua criança pode viver muito melhor, e você pode viver melhor com ela. Montessori nos apontou os caminhos mais bonitos de convivência entre adultos e crianças, e o Lar Montessori preparou um curso com o passo-a-passo desses caminhos, que já ajudou centenas de famílias a viverem com mais alegria. Vem conhecer um pouco mais:

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4 comentários

  1. Sensacional!

    Eu vejo também que os rótulos positivos também são tão devastadores quanto os rótulos negativos.

    Esses rótulos positivos também nos aprisionam de alguma forma. Se você é rotulado de “inteligente”, fica muito difícil de errar. Se você é rotulado de “comportado”, fica muito complicado experimentar algo novo que, em várias vezes, requer bagunça.

    Precisamos ficar alertas aos rótulos.

    Eles são fardos muito pesados para as pequeninas costas carregarem.

  2. Que possamos entender que um momento não define a complexidade do ser que é nosso filho e que possamos nos policiar para não transformar nossas crianças em embalagens. Buscando aplicar tudo que aprendo por aqui para ser um ser humano cada vez melhor. Obrigada por me ajudar a caminhar, Gabriel!

  3. Que possamos entender que a complexidade do ser humano não se resume a uma característica que nós insistimos teimosamente em atribuir-lhe, que não transformemos nossos filhos em embalagens. Eles são a completude do nosso próprio ser, são a mais pura e verdadeira humanidade.
    Obrigada por me ajudar a trilhar o caminho para ser um ser humano cada vez melhor. É prazeroso te ler Gabriel!

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