Acabo de ler um belo texto sobre o uso da palavra Montessori para o marketing e a publicidade, e fiquei pensando em uma questão importantíssima e muito pouco conversada: por que, afinal, não existe copyright para a palavra “Montessori”, de forma a garantir que só se possa usar esta palavra para tratar de algo genuinamente montessoriano?
Dois exemplos rápidos, para quem está chegando agora: uma escola montessoriana que realmente “faça Montessori” deveria, sempre, poder se chamar de “Montessori”. Faz sentido. Por outro lado, uma empresa vendendo quebra-cabeças coloridos e educativos não poderia usar a palavra “Montessori” só para indicar que o brinquedo é pedagógico, se ele não tem nenhuma ligação com Montessori. Ok? Ok.
Nesses dois casos, todo mundo concorda. O problema começa quando uma escola honesta tenta fazer Montessori, mas encontra limitações no dia-a-dia. Ou quando uma empresa produz um material que é usado em muitas escolas montessorianas, mas não é realmente parte do método Montessori. Ou ainda, quando um instagram sugere um estilo de parentalidade coerente, mas com pontos contraditórios em relação a Montessori. Qual é o juiz que decide quem pode fazer o que com qual palavra?
Eu nem quero ir nessa direção, hoje. Essa é a discussão que eu pauto em alguns círculos montessorianos desde 2015, mas não é o tema deste texto. Aqui, vamos mais fundo.
No começo de sua carreira, Maria Montessori quis colocar uma proteção no uso de seu nome, porque quando suas descobertas chegaram nos Estados Unidos, houve uma explosão de interesse comercial, e de exploração de seu sobrenome para várias finalidades. Ela não conseguiu.
Mais tarde, no entanto, mudou de ideia. E o motivo dessa mudança é o tema deste texto.
Montessori desistiu de proteger seu nome porque descobriu que suas descobertas iam muito além dela mesma. E isso deve nos ensinar alguma coisa.
Nós devemos proteger legalmente o desenho de um novo chip de celular. Ou um poema. Um logo, uma canção, um modelo de torneira ou um quadro. São produtos, e produtos podem ser protegidos. A proteção diz: “Eu criei isso aqui”. E como fui eu que criei, eu decido quem pode usar, como e quando.
A coisa muda, no entanto, quando em vez de criar, nós descobrimos. Faz muito mais mal do que bem a proteção legal de descobertas. Pense nas patentes de remédios que fazem com que eles custem centenas de vezes mais caro, por exemplo. Se “eu descobri isso aqui”, este é meu presente para o mundo. Talvez DaVinci pudesse ter direitos autorais sobre A Última Ceia. Mas veja o desastre que foram os direitos das metrópoles europeias sobre as colônias americanas, que eles acharam que tinham “descoberto”. Pense no horror ainda maior que teríamos enfrentado se os cientistas que descobriram o código genético do coronavirus tivessem decidido proteger essa descoberta, e vender, em vez de publicar e distribuir.
De volta a Montessori, agora.
A Maria Montessori era uma psiquiatra e uma cientista. Por um lado, é verdade que ela criou uma série de materiais, mas será que ela criou um método? Ela disse que não:
“Não é verdade que eu tenha inventado o que chamam de Método Montessori. Eu estudei a criança, eu peguei o que a criança me deu e expressei isso, e isso é o que chamam de Método Montessori”.
Montessori fez descobertas sobre a criança, muito mais do que a criação de uma pedagogia. O que chamamos de método Montessori é, no máximo, um produto provisório dessas descobertas.
Quando protegemos um produto, garantimos sua integridade. Para vender brinquedos para crianças no Brasil, eles precisam passar pelo controle de algumas instituições. Isso garante integridade e segurança.
Quando protegemos uma ideia, por outro lado, o que acontece é um sufocamento do coletivo da humanidade. Todos nós ficamos mais pobres, mais tristes, menos poderosos, porque uma ideia que poderia ajudar todo mundo a viver um pouco melhor está protegida, e sufocada.
Montessori padece de outro tipo de sufocamento, que é a estratificação social que impede o acesso de porções enormes da população a tudo o que é interessante na educação. Isso é uma realidade que temos o dever de transformar.
Estamos transformando. A cada ano, mais alguns milhares de crianças chegam a Montessori, das porções menos favorecidas de nossa sociedade.
Mas esse processo só continua se todo mundo tiver acesso às ideias, e todo mundo puder experimentar com elas. Para isso, é essencial que “Montessori” seja uma palavra livre o suficiente para chegar às crianças que mais precisam dela.
Oi Gabriel! Isso é muito interessante. Eu moro em um campo de refugiados de guerra no Malawi, África e aqui dirijo um projeto social de educação que usa o método montessori com crianças do Ensino Fundamental (lower elementary). Nossos desafios são gigantescos, não apenas em termos estruturais, como aquisicao de materiais, por exemplo, mas principalmente em termos de qualificação de professores, já que Montessori representa uma imensa quebra de paradigma em relação aos modelos de Educação conhecidos na região. Apesar dos desafios, seguimos adiante, confiantes de que as mais de 500 crianças que se beneficiam da nossa iniciativa social são as que mais precisam de um modelo respeitoso e transformador de Educação, por serem crianças que vivem à margem do planeta, que sequer tem um Estado ao qual pertencem e que olha por elas. Imagina o potencial que Montessori tem em um contexto de altíssima vulnerabilidade como esse! Adoraria poder trocar mais com profissionais experientes da área. Deixo aqui meu telefone, caso alguém deseje entrar em contato para conhecer o projeto da Ubuntu Nation School e trocar conosco : +2650991226275
Sabe, Gabriel, me perguntei isso semana passada. Eu mesma me projeto nas redes sociais querendo divulgar Montessori para as famílias e educadores para que mais crianças tenham a oportunidade de se desenvolver de maneira positiva e saudável. Muito inspirada pelo seu trabalho, seu trabalho me tornou uma prof melhor e Montessori me ensinou que a maternidade pode ser muito mais leve que positiva.
E ai, pensei em divulgar meus estudos e práticas com meu filho e alunos pelas redes e me perguntei se era digna de usar o título de “educadora Montessori” ou “parentalidade Montessori”. Esse texto esclarece muita coisa e leva à luz que se não estivermos sempre nos propondo a conhecer mais, a trocar com o outro a gente não vai conseguir ser digno de falar sobre Montessori, pois como você mesmo já disse uma vez: é uma obra que ultrapassa a vida, que vive e se transforma pelo tempo, pela cultura e pelas crianças que atinge e os adultos que preparam.
Muito obrigada por esse texto.
Parabéns pela iniciativa de divulgar o que fica atravessado em nossas gargantas de educadores quando vemos marketing só do uso da palavra Montenssori. Há de reconhecer que a palavra está para além de um brinquedo ou um móvel mas de uma luta da mulher pela dignidade de ser médica e educadora numa época que nenhuma mulher poderia exercer a função da medicina. Precisamos de mais Maria Montessori para que tenhamos forças para colocar em pauta as políticas publicas da educação e sabermos lutar por elas com dignidade, espelhando nos em tão cara médica e educadora.
Obrigada pela reflexão tão interessante e importante! A educação montessoriana é algo vivo para passarmos adiante e criarmos em busca de aumentar o acesso para mais crianças, seguindo o desejo de Maria Montessori de que a educação chegasse para todas as crianças. Acredito também que quanto mais as contribuições de Montessori forem conhecidas por mais pessoas estaremos caminhando também para que o marketing perda este espaço para o uso do nome sem sentido.