que dia é hoje?
um dia eu soube
hoje me foge.
[Leminski]
Na música “Pensar em Coisas Lindas”, Oswaldo Montenegro nos fala do mundo das crianças.
Balas, travessuras, carinho, carrinho, beijo de mãe,
Brincadeira de queimado, árvore de natal,
Árvore de jabuticaba, céu amarelo, bolas azuis,
Risadas, colo de pai, história de avó…
E é um mundo bonito, cheio de maravilhas, cheio de encantos. Em uma árvore, cujas raízes descem às profundezas e cujas folhas vão além do que os olhos distinguem com clareza, repousam infinitas formas de vida. Passeiam insetos entre as ranhuras de sua casca, lagartas em suas folhas, abelhas e borboletas em suas flores. Pássaros moram em seus galhos, mamíferos também. A seiva corre e escorre em seu tronco e seus galhos, os brotos nascem diariamente sob o sol, brilhando novos e verdes. Duas pequenas joaninhas caminham: uma, branca com pintas amarelo-escuras, fica na casca da árvore e outra, vermelha com pintas brancas, pousa no seu braço. Você sorri, porque joaninha dá sorte, e a devolve em uma folha, depois de mostrar para sua criança. Mas enquanto pensava que joaninha dava sorte, esqueceu de reparar em como suas pintas são iguais nas duas asas (ou simétricas). Quantas outras coisas escaparam aos seus olhos atentos e carinhosos?
Existem, principalmente, duas formas de ver a realidade, quanto ao tempo. A primeira, em que quase todos nós nos encontramos, é relembrar o passado para planejar o futuro. A segunda é viver o presente. Não é errado que vivamos no passado e no futuro, fomos condicionados assim e isso permite nossa sobrevivência em uma sociedade que só funciona desta maneira (grande exemplo disso é o noticiário noturno que, depois de passar em revista tudo o que já aconteceu, prevê o tempo do dia seguinte). Podemos viver assim, se queremos. Mas precisamos saber: a criança vive em um longo presente.
Quando uma criança tem à sua volta o mundo, e lhe é permitido ter acesso a ele, não perde tempo a lembrar do que já foi e não se preocupa em antecipar o que virá – quase não há nenhuma ansiedade. Ela vive em um presente de ação e trabalho. E este presente, para ela, é algo que recebe naturalmente da vida, e usa. Para a criança, não existem férias, feriados, finais de semana. O seu grande trabalho é construir-se, seus superiores hierárquicos são ela mesma e suas leis internas de desenvolvimento. Assim, seu trabalho é constante e seus desafios não param de chegar. Sempre há algo para conquistar e descobrir.
Assim, o que melhor podemos dar à criança – no dia das crianças, que passou, e em todos os outros – não é um presente, mas a oportunidade de viver o presente que já tem. O melhor que podemos dar é nosso respeito e nossa reverência, nosso amor na forma de atenção, cuidado e carinho, transmutados em preparação do ambiente e em autoconhecimento para nos tornarmos auxiliares da vida, e podermos de fato guiar a criança quando ela precisar, e sair de perto quando ela não necessitar de nós.
Em épocas comemorativas somos inundados de comerciais de presentes para as crianças. Pior, elas o são. Isso é sério, por dois motivos maiores. Primeiro, porque tira de nós a noção do que importa para a criança e deliberadamente nos engana, fazendo-nos pensar que ela se alegra mais com um novo objeto do que com a vida que existe ao seu redor, do que com a cozinha, o banheiro, o parque, os insetos, a terra e a chuva. Mas o segundo motivo é mais sério: a exposição da criança à publicidade infantil e a nossa aderência a essa publicidade condicionam-na a permanecer longe e isolada de sua natureza fundamental, transformando as conexões neuronais da criança para que ela passe a buscar a sensação efêmera de bem estar proporcionada pelo presente (sem itálico, o objeto) em vez de buscar fruir o presente (com itálico, o tempo e o lugar de agora).
Há quem diga que todos os dias são dias das crianças, e é real. Elas estão vivas todos os dias, e por isso estão todos os dias trabalhando e vivendo o presente. Isso não quer dizer que precisem receber de nós muitos objetos – sejam brinquedos, materiais ou artefatos educativos de qualquer natureza. Isso quer dizer que precisam receber de nós todo o respeito e toda a reverência, sempre. De todas as coisas, dizia Montessori, a mais potente é o amor. Ela também disse:
Não podemos prever as consequências de suprimir a espontaneidade de uma criança quando ela está começando a ser ativa. Podemos até sufocar a vida ela mesma. Aquela humanidade que é revelada em seu esplendor intelectual durante a idade doce e terna da infância deve ser respeitada com uma reverência religiosa. É como o sol que aparece ao amanhecer, ou a flor que começa a desabrochar. A educação não pode ser efetiva a menos que auxilie a criança a abrir-se para a vida.
Que todos os dias sejam dia de auxiliar sua criança a abrir-se para a vida. Tanto a criança que nasceu de você quando a que existe aí dentro, e precisa redescobrir a maravilha do mundo. Sabemos, por Montessori também, que “é preciso amar e conhecer o universo”. Que o ano que decorrerá entre este dia das crianças e o próximo seja de incríveis descobertas.
Incrível. Reflexões que precisam ser feitas com urgência, hoje, agora, pela grande maioria de nós, pais, adultos. Obrigada mais uma vez, pelas lindas palavras. A gente sente o cuidado e o carinho usados para fazer a pesquisa e o texto!
Como sempre, perfeito Gabriel. Excelente texto.
Sou sua Fã.
Sábias palavras! Suas reflexões transmitem tanta confiança que nos faz ter plena consciência que estamos sendo bem orientados na educação de nossos filhos.
Quanto material bom, rico em conteúdo e essência, não paro de ler!
Estou realmente impressionada com a qualidade dos textos. Além de muito agradável, está me fazendo refletir tanto, querer mudar tanto…
Parabéns!
Me emocionei com esse texto!