Vamos Esquecer os Limites

Há duas coisas que nós, adultos, chamamos de “limites” em nossa convivência com a criança. Uma é aquilo que não deixamos acontecer porque é um perigo, para ela, para outros, para o ambiente. Outra é aquilo que não deixamos acontecer porque nos incomoda. Montessori diz:

Dizemos que corrigimos a criança para seu próprio bem, e na maior parte do tempo acreditamos mesmo nisso. Mas é estranho como frequentemente aquilo que percebemos como o bem da criança coincide com nosso próprio conforto.

Por isso, vamos esquecer os limites, todos os que conhecemos.

Imagine-se em um ambiente precário e desconhecido. Você acorda num lugar que não conhece, com objetos que não conhece, e coisas fora do seu alcance. Sem referências. Qual a atitude lógica, do ponto de vista da sobrevivência? Provavelmente você respondeu “levantar, e descobrir onde estou, como esse lugar funciona”… talvez você tenha pensado em encontrar comida e água. Tudo isso exigiria, sem sombra de dúvidas, mexer no ambiente. Levantar coisas, abrir e fechar coisas, subir em coisas para acessar o que está alto demais. Talvez nos frustrássemos, ficássemos com raiva, confusos, tristes e ansiosos, inclusive. Precisamente como nossos filhos se comportam. 

Mas dê à criança, diz Montessori, um ambiente adequado e o efeito dele sobre sua mente será semelhante ao efeito que se dá na saúde quando lhe oferecemos uma dieta equilibrada. […] podemos garantir que o ambiente no qual a criança passe a maior parte do seu tempo não seja um ambiente de “nãos” – quer dizer, de coisas frágeis demais, coisas que estragam… – e nem um ambiente lotado de brinquedos. As duas coisas são indesejáveis. // Quando a criança mostrar interesse em qualquer coisa da casa, permita que ela fique com o objeto, se for possível, e talvez isso lhe mantenha ocupada por horas; e aí, quando o interesse acabar, é bem possível que ela não peça pelo objeto de novo.

Algumas coisas não podem ser permitidas, é claro. Não entregamos um facão a um bebê, ainda que seu interesse seja enorme. Não podemos permitir que nossas crianças puxem as orelhas de um bicho de estimação, ainda que isso pareça divertido, ou que belisquem a perna de um colega, por mais frustrado que estejam. Não se pode permitir que, intencionalmente, a criança jogue copos e copos de vidro ao chão. Mas à parte dessas poucas coisas que fazem mal à criança, a outro ser vivo, ou ao ambiente, não há muito que não possa ser permitido.

Por vezes, atitudes de nosso filhos nos assustam. Algumas coisas que eles fazem parecem tão inadequadas que precisam ser impedidas. Pode ser vestir várias camisetas uma sobre a outra, pode ser trocar de roupa várias vezes seguidas, talvez seja abrir todas as gavetas de um dos móveis da casa – ou de um cômodo! – ou tirar todas as frutas da fruteira. Fomos acostumados à interpretação de que essas ações são impróprias, devem ser interrompidas. Mas e se interpretássemos de outra maneira?

E se, em lugar de impedir, nós observássemos. Se, talvez, ensinássemos a fazer a mesma coisa com um grau de refinamento maior, ou, que, sabe, ensinássemos a criança a terminar aquilo que ela começou, e a deixássemos livre para repetir? Quanto de nossos mundos, nossas vidas, nossas relações com a criança, não se transformaria só porque nossa interpretação mudou? 

Vamos considerar, junto com Montessori, uma criança que adore deixar as torneiras abertas por muito tempo.

Você já lhe disse várias vezes para não abrir as torneiras. Em vez disso, permita que ele abra, mostre você mesmo(a) como mais e mais água flui pela torneira conforme você abre mais e como o fluxo diminui quando você fecha. Então, deixe que sua criança faça. // Assista-a se você quiser, mas esteja certa(o) de que você não pode ser vista(o). Você se surpreenderá com o cuidado com que seu filho vai abrir e fechar a torneira como se estivesse resolvendo um problema difícil depois, quando tiver dominado o problema das torneiras, provavelmente perderá todo o interesse naquilo que antes era um mau comportamento, vai usar as torneiras somente para sua função apropriada. 

A criança não sente só prazer quando pode agir no mundo. O que ela sente é a própria vida a fazer sentido pelo movimento das suas mãos. Nasce daí a concentração, o propósito, a autodisciplina, a perseverança… todas as bases para o desenvolvimento da personalidade e do caráter são lançadas pela ação, pelo movimento e pela conquista da independência. 

Por isso, vale a pena que façamos o exercício constante de esquecer os limites. Principalmente os que se formaram dentro de nós, e que não nos permitem ver a ação da criança pelo que ela realmente é. Assim, pelo esquecimento dos limites, abrimos uma nova trilha para nossas crianças, desempenhando um papel que se transforma também. Se antes nós interrompíamos e ensinávamos, agora nos tornamos companheiros e ajudantes da vida. 

____

Este texto foi baseado no texto Your Child Learns from His Sorroundings, do livro Maria Montessori Speaks to Parents, de Maria Montessori.

____

Quer conhecer mais Montessori?

            

Desenvolvimento Infantil, Disciplina, Paz

2 comentários

  1. Muito profundo, como tudo o que você publica Gabriel.
    Agora sim entendi como posso ajudar no caráter e na personalidade do meu filho. Faz uma semana, você “pulou” uma das minhas perguntas on line e acabei esquecendo de perguntar… Agora, abro a página do Lar Montessori e leio essa beleza de texto.
    Muito obrigada!

    Abraços,
    Carolina e Antoine

Deixe uma resposta