Porque Devemos Deixar as Crianças Tocarem em Tudo

Quando nossos filhos são pequenos, parece que tudo o que temos em casa ainda é pouco para eles. Pegam em tudo o que podem, e no que não podem também. Os vasos de plantas, os copos e os enfeites das mesas são sempre as coisas mais interessantes da casa. Não importa quantos brinquedos eles tenham, tudo o que não é brinquedo parece ser muito mais divertido, e atrai suas mãos como um imã.

Uma vez, quando tinha quase dois anos, um garotinho viu uma pilha de meias dobradas em cima do sofá. Não aguentou e pegou um par, com as duas mãos e muito cuidado, e levou até o outro lado da sala. Respirou fundo, voltou, e pegou outro par. Fez o mesmo com uns dez pares de meias, e depois os trouxe, um a um, de volta. A pilha ficou um pouco desarranjada, mas a criança estava satisfeita. Por sorte, nenhum outro adulto viu tudo, e ninguém interrompeu.

Uma outra criança teve menos sorte. Tinha três anos, e era dezembro. A mesa da sala, toda decorada para o Natal, não estava preparada para o medo dos adultos. A menina, de três anos, quis pegar em um dos enfeites – uma bola craquelada de vidro vermelho. Bastou estender a mão para que a mãe puxasse seu braço para trás, e o pai dissesse: “Esse não, filha, esse é para ficar na mesa”. Ela, chateada, tentou mais uma vez. Quando ouviu o grito dos pais, chorou. Esse era o espírito do seu Natal: querer e não poder usar as mãos.

É claro, o destino do garotinho teria sido o mesmo se algum adulto tivesse visto seu trabalho com as meias. Ele também não poderia. O adulto tem medo do que as mãos da criança podem fazer. Montessori nos dizia:

O primeiro avanço daquela mãozinha em direção às coisas, o lançar daquele movimento que representa o esforço do eu para ingressar no mundo, deveria encher de admiração o espírito do adulto. Pelo contrário, porém, ele tem medo daquelas pequenas mãos estendidas na direção de objetos sem valor e sem importância que o cercam, de modo que assume uma atitude de defesa dos objetos contra a criança…

Maria Montessori, em A Criança

Pois bem, se nós temos tanto medo, por que é deveríamos engolir esse medo todo, e permitir que a criança toque em tudo o que é importante para nós? A resposta, simples, é que a criança absorve o mundo pelos sentidos e pelas suas ações. Ela se constrói sentindo o mundo ao seu redor, e agindo nesse mundo, e portanto se torna um ser humano mais completo, pleno, e feliz, quando tem a chance de explorar a realidade completamente.

A criança que pega em um copo de vidro não está só pegando em um objeto novo, está descobrindo que as coisas podem ser cilíndricas, que podem ser brilhantes e transparentes. Percebe como as imagens ficam distorcidas através do vidro curvo, e como o toque do vidro é gelado no começo, e esquenta conforme o copo fica nas mãos quentes dela por alguns minutos. Ela sente o contorno da parte de cima, a circunferência, e enxerga a mesma forma preenchida na parte de baixo, o círculo. Olha para o mundo por dentro do copo, e vê o mundo todo através do vidro grosso do fundo… tudo isso antes que o adulto chegue, veja o que está acontecendo, entregue a ela um copo de plástico e diga: “se você quer água, pode usar esse aqui”.

Mas ela não pega só o copo de vidro, pega a caixa de bijuterias também. Abre a tampa, e fecha, e abre, e fecha, e tira de dentro cada colar, brinco, anel e pulseira, um a um, coloca no pescoço, no pulso, nos dedos, no chão, e depois dentro da caixa de novo, e fecha. E abre. Mas não brinca com as bijuterias, e só. Ela nota o brilho de cada face de cada pedra ou imitação de pedra. Percebe as manchas no metal antigo, e como reluz o metal novo. Coloca a pulseira contra o sol e vê o reflexo da luz na parede. É com o Sol que ela está brincando. Vê de novo o reflexo distorcido do mundo em um medalhão prateado. É o mundo que ela vê, não uma bijuteria.

Tudo isso, claro, antes que chegue um adulto para fechar a caixa, fechar o mundo, e dizer a ela que aquela caixa é dos adultos. O mundo é dos adultos. As mãos dela ficam algemadas. E a chave das algemas é a autoridade do adulto.

O remédio sugerido por Montessori é radical. Para uma mãe que teve medo de deixar o filho carregar um prato, Montessori sugeriu:

A senhora possui algum serviço de porcelana – xícaras de café, por exemplo – de grande valor? Deixe o menino transportar uma delas e veja o que acontece.

Maria Montessori, em A Criança

Montessori chega a nos perguntar, em um de seus livros: “Você alguma vez deu ao seu filho, mesmo que só por um dia, a oportunidade de fazer o que ele quisesse sem intereferência?”. É claro que devemos proteger as crianças do que é muito perigoso, e devemos interromper o que a coloca em risco, prejudica outro ser vivo ou danifica o ambiente. Mas de resto, será que já fizemos isso? Por um só dia, já deixamos nossos filhos em liberdade verdadeira?

Não são só coisas delicadas que interessam às crianças. Panos para tirar pó, gavetas, caixas, almofadas para carregar, panos de prato para dobrar, porta-retratos para armar, garrafas para abrir e fechar (favoritas!) e cadeados para abrir e fechar são igualmente satisfatórios. A criança nos aponta a direção, ela mostra qual é a próxima coisa que interessa, qual é o pedacinho de mundo que quer descobrir.

Se nós deixarmos, ela vai ter a chance de desbravar mais um pouquinho da vida. Vai explorar mais um pedacinho do mundo. E assim vai construir dentro de si mais um pouquinho de fascínio, mais uma gota de curiosidade no imenso oceano do interesse. Mãos paradas são inteligência aprisionada. As mãos, diz Montessori, são os instrumentos da inteligência humana. E a inteligência humana pode tudo, se puder agir em liberdade.


No Lar Montessori, acreditamos que compreender a criança seja a chave para uma educação melhor e vidas mais cheias de paz. Se você também acredita nisso, pode ser que nosso curso mais recente seja para você. Dê uma olhada clicando na imagem abaixo:


A referência principal deste texto é o capítulo A Mão, do livro A Criança, de Maria Montessori.

Deixe uma resposta

Descubra mais sobre Lar Montessori

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading