Montessori e o Coronavírus – Parte 3 – Valorização da Personalidade

Estamos todos privados de nossa liberdade – quem precisa ficar em casa e quem precisa sair faz as duas coisas ligeiramente contra a vontade. Nossos quereres não contam, e nas palavras de Montessori “fazemos o que temos de fazer, e fazemos as coisas na ordem em que elas chegam”. Isso nem sempre é ruim, mas nem sempre é libertador também.

Estamos sentindo em nossos dias aquilo que as crianças sentem sempre. Ficar preso, só fazer qualquer coisa quando uma autoridade permite, só agir da forma ensinada, criar dentro de limites muito claros. Nosso espaço é maior que o berço e o cercadinho, talvez até maior que a sala de aula, mas ainda assim, é um cercadinho, e dentro dele nós não temos tudo o que gostaríamos, não temos escolhas demais. Só as mínimas necessárias para uma sobrevida psíquica inferior a que fomos feitos para buscar.

O tempo que vivemos é uma oportunidade única para compreender a criança. O que faz você se sentir vivo? Alguns reclamam da falta da academia, onde testavam seus limites físicos. Outros queriam voltar ao trabalho, porque encontravam uma atividade cheia de sentido lá. Há os que buscam cursos online para continuar aprendendo, porque expandir a compreensão é interessante (se você é dessa turma, veja nossos cursos aqui). Finalmente, também existem os que estão aproveitando o tempo em família, porque é com os seus que sentem que fazem os esforços mais significativos de suas vidas.

Nós buscamos esforço, sentido, superação, contribuição. As crianças também, exatamente do mesmo jeito. Elas querem se superar, criar a si mesmas, aumentar suas capacidades, sua compreensão e sua força. Em seu dia-a-dia, as crianças buscam as mesmas coisas que nós buscamos. Diferente de nós, no entanto, com os cuidados certos a quarentena pode ser o momento mais adequado para algumas de nossas crianças alcançarem o que mais desejam: independência, tempo para experimentação, exploração de suas capacidades.

Montessori resumia toda essa busca em um termo só: Valorização da personalidade. Dizia: “valorização – ela é independente, sabe o que fazer e como fazer. Essa é a base e a lei sobre a qual a alma se sustenta. Todo o resto, a doçura e tudo, é secundário diante da ‘valorização’ da personalidade”.

Se a valorização é importante assim, como pode ser alcançada? Em duas palavras, pelo caminho do esforço máximo.

O adulto está acostumado a buscar o esforço mínimo. Se o processador de legumes pica alho e cebola, eu não preciso picar, e se posso controlar os canais da televisão pelo controle remoto, isso é muito melhor do que caminhar até o aparelho. A criança prefere picar e caminhar até a TV. A busca é pelo máximo de esforço que ela pode fazer a cada momento.

Em linhas gerais, dizia Montessori, “A cada idade se deve buscar a oportunidade para o maior esforço, e a maior experiência social que se puder alcançar ativamente”.

O tipo de esforço muda muito a depender da idade das crianças, e o que vamos fazer agora é pensar, rapidamente, nos tipos de esforços mais típicos de cada idade, e depois explorar três leis universais do esforço máximo.

0 a 3 anos – as crianças bem pequenas estão trabalhando sobre dois tipos básicos de independência: querem sobreviver e usar bem o corpo. Então, aprender a se servir de tudo o que é alimento, beber água, tomar banho, e vestir peças simples de roupa são tarefas ricas. Para além disso, caminhar é fundamental. Claro, com a pandemia é bem difícil, então podemos pedir ajuda de nossos filhos para carregar as roupas do cesto até a lavanderia, uma a uma, ou colocar pratos na mesa, um de cada vez. Tarefas assim rendem muitos passos – meu celular esses dias indicava 4000 passos dados somente resolvendo tarefas domésticas. Eu talvez não seja o dono de casa mais eficiente, mas para crianças essa notícia é maravilhosa.

3 a 6 anos – depois de usar o corpo com destreza e sobreviver, sofisticar as habilidades é o que mais importa. Então, as crianças um pouco maiores podem aprender a dobrar roupas e panos de prato, carregar uma pilha de camisetas dobradas até o armário, alimentar o bicho de estimação ou limpar seus dejetos, lavar o vidro do box ou das janelas, e cozinhar. Ao contrário do que imaginamos, não é preciso ser muito simplista nas atividades oferecidas. Lembre-se: esforço máximo. Se a criança está querendo fazer força, ela pode abrir massa. Talvez não seja a massa mais fina que já comemos, mas será a criança mais tranquila com quem já convivemos, de certo. Finalmente, exercícios que envolvam movimentos delicados interessam: parafusar, costurar, dobrar, traçar contornos. Interessam também exercícios que envolvam os sentidos: juntar meias iguais na hora de guardar ou pendurar no varal, encontrar o vidro certo para guardar temperos pelo cheiro e pela cor, ver se a cenoura já está bem cozida usando um garfo para ver se está firme.

6 a 12 anos – ainda mais do que os mais novos, eles gostam de estar junto e compreender relações sociais. Então, ler ou contar histórias, assistir desenhos ou filmes, desenhar histórias em quadrinhos e jogos analógicos ou digitais são escolhas que sempre funcionam – tudo isso é interessante sozinho, mas fica ainda mais gostoso em família. A exploração das crianças maiores não é mais física, mas já é intelectual. Ajudar a multiplicar a lista de compras de uma semana para que ela dure um mês, por exemplo, é uma ótima tarefa. Compartilhar dos esforços da casa é sempre importante. Eles podem fazer uma divisão de tarefas junto conosco, e garantir que todas as mais importantes sejam executadas diariamente, no horário certo. Para as famílias mais afeitas, as visitas a pontos de importância mundial pelo Google Earth ou as visitas virtuais a museus são uma boa pedida também. Nisso tudo, a passividade é o pior dos mundos. As crianças devem ser ativas em tudo. Às vezes nós somos os líderes, às vezes elas são, mas a atividade deve estar presente sempre, assim como o esforço e a superação.

Falar sobre os adolescentes na quarentena é um capítulo à parte. Se for de seu interesse, comente por favor, e um texto só sobre eles pode ser publicado em breve.

Agora, vamos dar uma olhadas nas…

Três Leis Universais do Esforço Máximo:

1ª Lei – É preciso ver para poder fazer

Se você fosse fazer uma lasanha pela primeira vez, provavelmente assistiria a um vídeo no YouTube várias vezes, parando nas partes importantes. Ajudaria se você já soubesse usar o forno e já tivesse feitos pratos mais simples ali antes. Para as crianças conseguirem fazer coisas sozinhas é assim também: primeiro precisam ver alguém fazer, com pausas, em silêncio, lentamente, e talvez várias vezes. Ajuda se antes de fazer alguma coisa complexa, elas tiverem desenvolvido as habilidades mais simples envolvidas na tarefa nova. Claro que depois que alguma familiaridade, a criança consegue “adivinhar” algumas coisas, sem ver, literalmente. Mas isso só acontece porque ela já viu muito e já experimentou o suficiente.

2ª Lei: É preciso tempo para experimentar

Não dá para fazer uma coisa nova e acertar logo da primeira vez, todas as vezes. As crianças precisam de tempo para começar, testar possibilidades, explorar, errar bastante, aprender onde estão errando e, devagar, corrigir cada pequeno erro, até alcançarem a excelência. Nós podemos ficar tranquilos sabendo que as crianças buscam melhorar e se aperfeiçoar sempre. Mas precisamos dar a elas o tempo para o esforço necessário no processo. A pressa não é só uma inimiga da perfeição, ela é a inimiga da vontade de se aperfeiçoar, também, e isso é muito mais grave. Se há uma sorte no nosso tempo é que as crianças podem viver com menos pressa.

3ª Lei: Qualquer ajuda desnecessária é um obstáculo

No caminho do aprendizado as crianças erram bastante. Isso não quer dizer que precisem ser corrigidas. Uma das orientações que Montessori dava aos professores era: “respeite aqueles que cometem erros, sem nunca os corrigir”. Se o erro persiste, nós podemos dar uma nova demonstração de “como fazer” para a criança, sem mencionar seus erros. Mas nunca corrigimos. Finalmente, nós também não ajudamos. Se a criança acredita que consegue fazer sozinha, se ela ainda está tentando, e buscando acertar, melhorar ou superar a si mesma, uma ajuda de adulto só vai ensinar a ela que quando as coisas ficarem difíceis, vale a pena parar de tentar, desistir, pedir ajuda, e confiar nos outros mais do que nela mesma.

O respeito ao esforço livre e concentrado da criança é uma das características mais fortes do método Montessori. Estar em casa não quer dizer parar tudo. A escola pode estar parada, os passeios também. O desenvolvimento pode continuar e, para a criança, desenvolvimento é vida. Em uma época de tanto risco à vida, o maior consolo, a mais admirável promessa de um mundo novo é uma criança que passa a confiar em si mesma porque se descobre capaz de qualquer coisa. A maior esperança do mundo é uma criança que conquistou a valorização de sua própria personalidade.


Há quase dez anos eu acredito na possibilidade de estarmos juntos pela internet, e de aprender e ensinar Montessori online.Muito do que aprendi de Montessori foi assim, e quase tudo o que ensinei também. Hoje, os cursos do Lar Montessori já têm quase 3.000 alunos matriculados, em dezenas de países. Se este texto ajudou você a enxergar novas possibilidades para seus filhos, visite nossos cursos e explore mais. Em especial, quero recomendar a você o curso Montessori: Viver em Paz com Crianças. Lá você vai encontrar as principais lições de Montessori para um convívio pacífico, amoroso e tranquilo em família, entre adultos e crianças. Veja o que alguns participantes do curso disseram:

Gente, tô chocada com essa aula. Que visão fantástica do mundo. Faz tanto sentido. Lembrei… da minha infância. Cada dia me apaixono mais por Montessori.

Thaís Serafim, sobre a aula “A Origem dos Conflitos Entre Adultos e Crianças”.

Excelente síntese em 6 min do que mais valioso podemos dar a uma criança: respeito e compreensão! E com exemplos simples dá uma perspectiva exata do que deve ser feito!

Carlota, sobre a aula “Crianças Obedientes Não Ficam Quietas”.

As citações ao longo deste texto vêm do livreto “Moral and Social Education”, de Maria Montessori, publicado pela Associação Montessori Internacional. O texto é de 1938. A última citação, sobre os erros, também é de 1938, e vem do livro “The Child, Society, and the World”, também de Maria Montessori.

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